quinta-feira, dezembro 07, 2006

Faça amor, não faça merda


Não tive coragem.
Medroso assumido.
Gostaria de ser um herói, quem sabe eu ainda tento.
Pelo menos eu divulgo, pode não parecer nada, mas...
http://www.malvados .com.br/normalpr oject/

sábado, dezembro 02, 2006

Seis dedos

Sentada na mesa, a espera da cesariana, ela dava sua última entrevista como gestante, à pergunta sobre o nome do pai, a resposta em si já valeria a pena pensar e escrever, “assim de cabeça, eu não lembro não”. Isto nos coloca de frente a nossos preconceitos, como evitar julgamentos morais se fomos criados na mesma cultura que ela e ouvimos a vida toda, assim como ela, que as mulheres deveriam ser castas e as mães santas. E as crianças criadas sob a influência de um pai e de uma mãe.

Neste caso o que nos incomoda é o choque entre o que aprendemos, que o sofrimento humano é causado, na maioria das vezes, pela interpretação que damos dos fatos, e não pelos fatos em si. É pertubador, portanto, a nós juízes morais, a simples falta de sentimento ao anunciar isto, a pobre coitada, não dá a mesma importância que nós. Ignora os nossos valores, isto é imperdoável.
Mas isto, diria ela, é problema nosso.

E os nossos valores indicam que o nascimento tem que ser com hora marcada, anestesia e bisturi, sem gritos, sem choro, sem vida. A cesariana nunca foi a coisa mais emocionante do mundo, o ambiente asséptico, o silêncio da mãe, o automatismo do cirurgião, o sono do anestesista e a criança saindo, meio que com vontade de ficar, pelo lugar errado. E pensar que é assim, sujo e assustado que se começa uma vida, os braços desconjuntados crescerão e tentarão atingir o inalcançável, o coração que se debate desesperado ainda se espancará por emoções que ainda nem foram sonhadas e os olhos arregalados ainda chorarão muito mais. E que tudo isto, um dia, parará. Alegria e sofrimento, emoções a que aquela semente está condenada.

Curioso acadêmico, fiquei observando o bebê, segurado pela neonatologista que o examinava. Um susto me chamou a atenção, tão absurdo que tive que olhar para a minha própria mão: polidactia. Nas quatro extremidades ele tinha seis dedos perfeitos. Perguntei consternado à médica que respondeu gritando, entusiasmada, talvez pela oportunidade de eu ver algo tão raro em uma das minhas primeiras oportunidades de assistir uma cesária, talvez por quebrar a monotonia do plantão, sabe-se lá os motivos que levam a comportamentos absurdos...

Mas a felicidade dela não me contagiou. Talvez a tarde inteira assistindo a pacientes crônicos tenha me deixado soturno, talvez não só isto, mas imaginei aquela vida, começando em uma idade tão próxima a de sua mãe, com todas as dificuldades de se nascer em um hospital público em meio a miséria de um país virtual e uma comunidade perdida. E ainda por cima com seis dedos.

Sid

domingo, novembro 26, 2006

No Ceará não tem disto não.

Acho que nunca vai sair da minha memória, pelo menos assim espero, a imagem dela cantando Luiz Gonsaga. “Este tal de câncer...”, disse ela, “... vou me embora para a minha terra... lá não tem disto não...”

Na faculdade nos ensinam que os pacientes criam uma relação de dependência que às vezes torna difícil livrarmo-nos deles, o tal “desmame”. Não tenho visto isto. É duro admitir que é bem mais difícil para mim, vou sentir falta dela, de nossas conversas, do choro que nunca vi.

O choro que nunca vi. Um dia sua filha veio me dizer que estava preocupada com a depressão dela. Depressão? Sua mãe acabou de descobrir que tem câncer e você queria que ela estivesse sorrindo e cantando? Nunca vi uma mulher tão forte.

Foi pensando nisto que fui me despedir dela, como sempre agradeci com um sorriso o fato dela ter me ensinado a ouvir os tais dos “estertores crepitantes”, minha primeira paciente de pneumo. Ele estava linda, toda maquiada exibindo a foto do último neto à toda enfermaria, falava sem parar e repetia com orgulho a notícia da alta.

Consegui, com dificuldade, um segundo de exclusividade em sua atenção para perguntar o que ela iria fazer depois da alta. A resposta não poderia ser mais óbvia: “Vou voltar para a minha terra”. Mas como? E o resto do tratamento?

“Meu filho, a primeira coisa que aprendi nesta vida é que vou morrer. Vocês médicos querem nos enganar, fingindo que vamos viver para sempre... Ah! Mas a mim vocês não enrolam não! Eu vou é voltar para o meu Ceará! Vou morrer lá! Já fiz o que tinha que fazer, já criei minhas filhas e já vi os meus netos, já não sirvo mais para nada, só para morrer mesmo.”

Eu fiquei pasmo. Não esperava esta resposta. Cadê o medo da morte? Como alguém consegue dizer que “não serve mais para nada” com um sorriso no rosto? Tenho ainda muito que aprender por aqui, quando ela completou: “esta vida não tem significado nenhum, a não ser o que a gente dá para ela. Tudo acaba, tudo não é nada não. A gente pode ficar chorando pelo canto ou arrumar um jeitinho de ser feliz. Eu vou é voltar para minha terra e ir feliz...”

Quanto a mim, eu vou ficar aqui, pensei. Sempre andando pela enfermaria por entre sofrimentos, o coração apertado como uma criança perdida, sem entender, sem agir. Queria ser como ela. Mas ela me ensinou mais do que estertores crepitantes, me deixou com a impressão que a maioria dos problemas de nossa vida não valem a preocupação e que existe apenas um fio tênue de verdade que liga o que eles aparentam ser daquilo que realmente são, no final das contas, a pior coisa que poderia nos acontecer, a morte, é natural e inadiável.Vou sentir a sua falta.

Sid

domingo, novembro 19, 2006

Em paz

“Eu fecho os olhos e ela está sobre mim. Às vezes fica ali, me olhando, de pé, sozinha. Ou como uma sombra tenta me abraçar. Eu já a vi flutuando na janela sempre fechada, me aguardando. Eu posso correr, me esconder, mas não consigo fugir. Ela está sempre lá, me esperando.” Um paciente me disse isto uma vez, de vez em quando eu me lembro, como agora.

Esta paciente sim, tinha conseguido se esconder da morte. Há, pelo menos, dez anos. Agora estava quase completando cem. Ali, quieta, imóvel, na cama de sua casa. Os parentes, em busca da boa morte, haviam tirado ela do hospital, a desumanização e, por que não admitir, o custo do sistema de saúde tinha tornado impraticável. Uma decisão difícil, mas definitiva foi tomada: ela morreria onde sempre viveu, com dignidade e sem levar os que ficam à falência.

Não morreu, mantêm-se teimosamente viva em sua cama. Sem cuidados intensivos, sem equipamento. Não fala, não se mexe, não faz barulho. Acho que a morte simplesmente esqueceu dela. A família, que a trata com um carinho que raramente eu vejo dedicado aos idosos, é simpática com o médico, mas, talvez devido a minha presença, não poupou comentários incomodativamente irônicos em relação à medicina tecnológica, científica, asséptica e, em última análise, inútil.

E pensar que foram acusados de desrespeito, assassinato, eutanásia e sei lá mais o que... A medicina é mesmo como andar em pedras enlameadas: qualquer argumento pode voltar-se contra você. Qualquer palavra, qualquer certeza, qualquer atitude... É como que a vida insistisse em ensinar aos médicos humildade, pena que poucos deixam-se aprender.

Quando saímos, o médico me disse que a família o chamava sempre, preocupada com o conforto da paciente, queriam vê-la ir em paz. Agora ele sentia mais confortável pois ortotanásia, passou a ser a palavra da moda, com a chancela do Conselho. Mas buscar o conforto de um paciente que não fala, não expressa nada (nem dor) e talvez nem retenha memória, pode ser mais desafiante do que parece a primeira vista.

Decidiu retirar algumas medicações, argumentou aos familiares que não estavam mais fazendo efeito. Eu disse a ele que isto era eutanásia e não ortotanásia. Ele me explicou que não, a medicação nunca tinha feito efeito, receitara apenas porque não se sentia confortável em ser chamado e não tomar nenhuma “atitude”. Na hora concordei, aprendi. Mas agora eu penso que a atitude poderia ter sido explicar, conversar e, cuidar da família tanto quanto do doente. Por mais saudáveis que eles tenham me parecido, não deve ser fácil.

Sid

sexta-feira, novembro 03, 2006

Erros e Acertos

Logo quando eu o vi sentado, suando, tremendo e balbociando palavras inteligíveis percebi que seria um tema de meu blog. Não imaginei de pronto que este seria o título, de tão acostumado que estou por apontar somente os erros, como se os acertos não existissem, esta palavra ainda me causa estranheza... Mas talvez seja o início da construção da maturidade clínica, o início da percepção de que a vida, e a medicina, não é tão simples quanto parece à primeira vista, ao começarmos a compreender os processos que levam a formação da decisão clínica começamos a entender – e a aceitar – os erros que eventualmente podem aparecer no caminho.

Erros, no entanto, não foram feitos para serem aceitos, especialmente se nascem da falta de respeito e de comprometimento com aqueles que justificam a nossa própria presença no hospital, com isto em mente, ao perceber o sofrimento do doente fui perguntar ao residente se não haveria algo para fazer para amenizar, "todos aqui sofrem, ou não estariam aqui". Ainda tentei iluminar aquela pobre alma, tentando ser mais direto: "Será que não dá, ao menos, para liberá-lo?".

Não, o paciente tinha uma febre nitidamente infecciosa, era precisa que ficasse pronto o hemograma para que se determinasse se a origem era um vírus ou uma bactéria, excluir as mais comuns e guiar o tratamento. Paguei com a língua, o residente estava certo, fazia sentido então mantê-lo lá. "Se você quer ajudar ao mundo, vá ao laboratório e pegue o exame dele, é um bom começo." Fui.

Quando cheguei ao laboratório os exames estavam prontos: um teste rápido para HIV e um hemograma. Bom, eu espera mais, algumas sorologias, mas o hemograma nitidamente representava uma infecção de origem bacteriana, o que então justificava a clarividência do residente em não pedir mais nada. O cara é bom mesmo. Infecção bacteriana, cujo foco ele já havia me dito que não havia encontrado, supondo eu uma anamnese e um exame clínico bem feito, fiquei curioso para saber quais seriam os próximos passos...

Nestes momentos as realidades vão se formando em nossa mente para construir uma representação realmente funcional do mundo. A verdade em si, jamais saberemos, uma vez que o que guardamos é sempre uma interpretação dela: o que é era absolutamente certo agora, pode ser o erro mais absurdo daqui a pouco, para pouco depois tornar-se obviamente correto. Ao retornar, entreguei-lhe o resultado do exame e, após mais alguns minutos de espera, chamou o paciente e disse-lhe: "O resultado do senhor mostrou uma infecção bacteriana, mas ela é oportunista, o mal do senhor é uma infecção viral escondida, a qual não podemos fazer nada, o senhor volte para casa, Tylenol de 6/6h e espere melhorar".

Quase caí para trás, não era possível aquele médico que eu estava começando a admirar tivesse feito o paciente esperar tanto tempo por um exame que ele simplesmente não iria dar o menor valor. Eu tive perguntar, afinal me parecia um absurdo. "Esperei o exame de sangue para ter uma noção do estado paciente. Embora eu não tenha medido a temperatura dele, os resultados, você pode ver, indicam uma pessoa saudável submetida uma infecção que ainda nem é tão grave ainda. Como eu não encontrei o foco da infecção bacteriana eu não posso tratar algo que eu desconheço, portanto, não nos resta outra chance além de dizer para o paciente voltar para casa e , ou esperar que o foco apareça para podermos tratá-lo, ou esperar que a infecção se resolva sozinha, graças ao sistema imune do paciente que é plenamente competente." Esta é uma explicação plausível. Certo, minha admiração voltou.

No almoço, fui gabar-me aos colegas do que eu tinha aprendido. Que alguns absurdos não eram tão absurdos quando analisados e que não devíamos sair criticando tudo que os médicos fazem, antes de no mínimo permitirmo-nos a experiência. Eu estaríamos comportando-nos igual aos "leigos", aquela racinha desprezível...

"Bela visão. Mas alguns absurdos ainda assim são absurdos". Disse ele, cuja opinião certamente não era só para ser levada em conta e sim, na maioria das vezes, seguidas à risca. Voltamos à velha questão do que é certo e o que é errado. Um paciente que vai e nunca mais volta, não sabemos o que houve com ele, se ele morreu atropelado ou se ainda vive, curado. Ou se foi a farmácia, comprou AMOXIL e curou-se no dia seguinte. Jamais saberemos. Mas existem algumas coisas que podemos saber, disse ele, entre elas que o foco da infecção não precisa ser visível, mas pode ser subentendido pela clínica ou pela anamnese, será que um exame físico de um paciente febril em que sequer a temperatura foi medida foi realmente completo?

Devemos imaginar também que nem sempre a febre resolve-se por si só, pode lesionar as valvas cardíacas antes disto. E ainda completou em tom trágico: "Ele quer um foco? Ele pode ter um foco daqui a três dias: o sangue todo de um paciente em sepse"
Mais uma vez vemos que o certo é certo e o errado é errado, dependendo de quem vê, analisa e do que esta pessoa quer acreditar. Qual atitude eu tomaria? O que eu faria? Uma coisa é certa: exame clínico completo e boa anamnese, assim como canja de galinha, nunca fez mal a ninguém. Muito menos bom senso.

Sid

sexta-feira, outubro 27, 2006

Tire a mão de mim

Quando vamos solicitar a algum paciente que nos deixe treinar o exame físico algo de estranho ocorre: o que era para ser um favor dele para nós, é encarado por eles como uma obrigação difícil de ser negada e com bastante sofrimento agregado.

Em um leito existe um sofrimento em forma de ser humano que se estivesse bem estaria em casa e não na enfermaria de um hospital público, agora vem um chato te cutucar, te bater com a ponta do dedo e haja "trinta e três"! Um paciente uma vez me disse, quando lhe perguntei se doía: "Até hoje de manhã não doía, mas tanto futucaram estes meninos que está doendo" Meu colega reclamou, como que aquilo fosse uma afronta e não uma justa reclamação. Não cabe aqui ter pena, e sim seriedade, empatia e respeito.

Este é o dia-a-dia de nós, estudantes, ocorre tanto que já nem mais me dou o trabalho de escrever, estarei em perdendo a empatia, anestesiando-me do sofrimento alheio? “Como todo médico”?

Mas esta noite, na sala de parto natural houve uma cena marcante demais para passar desapercebida, cuja raiz eu vejo no mesmo problema. Especialmente porque eu notei que alguns colegas sentiram orgulho, quando eu senti vergonha daquela mulher.

Grávida a termo, moça humilde, porém digna. Pai conhecido e amado, humilde também, esperava lá fora, preocupado e ansioso: era o primeiro filho do casal. A moça estava na sala de parto com a mãe segurando em sua mão.

Jamais saberei como dói a dor do parto, mas se a intenção de Deus era mesmo punir Eva pela tal maçã, aquele Deus do primeiro testamento não era mole: deve doer mesmo. Ela já não tinha mais lágrima, desnuda exposta como nunca estivera a tantos homens, a tanta gente. A dor a impedia de qualquer vergonha.

Será que alguém teria o direito de cobrar desta menina um vocabulário condizente com aquele que os professores doutores acham que seria apropriado?

"Mãe, pede para esta mulher tirar a mão de dentro de mim, porque está doendo muito", disse entre gemidos e soluços.

"Mulher não. Para você é 'Professora Doutora'"

Imediatamente me veio a dúvida: se para a paciente ela era "Professora Doutora" quem ela era para ela mesma? Não tenho dúvida que, ao tirar o jaleco branco, ela deveria ser alguém que não merecesse qualquer crédito, pois quem não aceita-se como ser humano ("mulher") e precisa de uma fantasia para "ser", não deve ter nada por dentro.

Deus me livre que a fantasia me marque suficiente para que não consiga tirá-la, que eu não seja nada além dela, por dentro e por fora. Vou precisar ser forte, mas não deixarei esta vaidade por as mãos em mim.

Sid

quinta-feira, outubro 19, 2006

Saco

"Que saco!" Ele disse. "Será que não dá para alguém mandar ela calar a boca?" Referiu-se para a equipe de enfermagem. Eu ao seu lado, deveria ter ido lá e falado com ela. Eu sabia o que dizer, estava fantasiado de Deus envolvido em símbolos de poder: o estetoscópio pendurado e a toca verde. Mas não fui. Fiquei vendo a monitorização da outra paciente, fiquei puxando o saco do professor.
Agora eu sei exatamente o que deveria ter dito: "eu sei exatamente o que senhora está sentido, já passei por uma cirurgia bem semelhante a esta. Foi feita uma medicação analgésica e em breve a senhora não vai mais sentir dor. Por favor, tente relaxar, existem outros pacientes na aqui na sala de recuperação pós anestesia geral que também precisam descançar..."
Será que ela teria calado a boca? Será que eu teria ganhado uns pontos com o professor?
Eu, com certeza, agora não estaria aqui relatando mais este erro. Poderia ter sido pior, poderia ter criado uma dependência que faria ela gritar ainda mais quando eu fosse embora, mas tudo poderia quando nada foi feito. Menos um sofrimento que tentei aliviar, escrevo para que da próxima vez eu não hesite.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Onde menos se espera

Propor-se a trabalhar com pessoas é expor-se ao inesperado, ao incômodo, ao desconsertante e ao amedrontador. É estar preparado para enfrentar seus temores e desejos. É saber separar aquilo que você gostaria que fosse (ou que não fosse) daquilo que realmente é. É saber superar imposições e barreiras éticas, morais e religiosas. É saber ser e deixar que sejam.

É também um exercício diário. Aprender a se reconhecer e a aos seus sentimentos, pode não parecer tão simples, mas é fundamental para o exercício da profissão e só é possível quando se sabe exatamente quem é você e porque você está ali. O que você pode fazer e quais as implicações que seus atos podem ter.

Com estas coisas em mente vamos aprendendo a nos comportar. Primeiro o paciente que fede, o paciente que é sujo. O homossexual apaixonado, o hipocondríaco carente: erros nossos que vêem à tona. O doente teimoso, o que é arrogante, o que devia ser médico: estes nos ensinam que é mais difícil lidar conosco mesmo. Já o agressivo e o criminoso nos ensinam a ter firmeza e segurança no que dizemos. Tem também aquela cuja beleza é evidente demais para ignorarmos. Esta, talvez, seja a mais difícil.

Mas existem coisas que transcendem qualquer compreensão, que vão muito além do que podemos supor ou explicar. Um professor negro já é raro, outra lição anti-preconceito. Conversávamos no corredor, me falava sobre a sua religião: dizia que o unia com o seu ethos, assumia assim a sua cultura e uma dívida com seus ancestrais, como que se a fé necessitasse explicações. Narrava o que ocorria nos cultos e como isto levava a compreensão do comportamento humano fundamentais para a sua experiência como psiquiatra.

Foi quando eu perguntei a ele se ele já havia visto nos cultos algo que não conseguisse explicar à luz da ciência. Alguns poucos minutes de silêncio, os olhos nitidamente buscavam uma lembrança a que se apoiar, a mente buscava uma explicação racional para tudo enquanto pensava uma resposta. Disse o cientista: “não”. “No terreiro não, mas no consultório sim”, completou o médico.

sábado, outubro 07, 2006

Nada

Foi. Cansada ela olhava, simplesmente olhava: o rosto sem expressão era tudo que poderia significar no momento. Nem a residência, nem o mestrado, sequer o doutorado, nada disto ajudou a ele. Para que, afinal, tudo isto?
Olhando para ele eu me via. O que estou fazendo aqui? Para que ser doutor? Para que tentar, me esforçar, sentir, sofrer, perder, vencer? Por que não simplesmente ir? Por que insistir? Para tentar atravessar este caminho de forma mais agradável possível? O que é tudo isto se não o significado que damos as coisas? O que é o significado se não ilusões que criamos para esquecermos o nada?
Enquanto fechavam os olhos deles, eu fechei o meu, empatia ou reflexo, não sei. Eu vi o fio que nos liga, o antes igual a depois: o mesmo nada, exatamente igual. Por que então tememos o nada, se antes de sermos houve toda uma eternidade? E ainda haverá eternidade quando não formos mais.
Acabou, todos se foram. Senti um tapa no ombro, mas depois me vi sozinho. Afinal, é assim que se morre.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Inconsciência ou morte

Eu saí da sala querendo uma história para contar no blog, mas, desta vez, eu não queria falar mal da medicina. Não de novo. Apesar de eles terem me dado motivo, estes cirurgiões... Mas falar mal da grosseria e arrogância dos cirurgiões é um lugar comum batido demais para eu me expor mais. Eu sei que deveria ter ficado em sala, eles já estavam abrindo o pericárdio: muito a aprender, muito a ver. Mas não paravam de brigar entre eles, com toda a equipe e até comigo, que nada fazia, apenas olhava passivo. E me deu pena da instrumentadora, coitada. Se o paciente pudesse ouvir...

Na realidade eu não tenho certeza que ele não pode ouvir, provavelmente, eu nunca saberei. Isto me lembra que Maria José Limeira, escritora e doce jornalista democrática da, para mim, distante João Pessoa, que sempre me estimulou a escrever tinha me pedido para falar sobre catalepsia, que é a suspensão parcial ou total da sensibilidade e dos movimentos do corpo, e sobre a consciência durante a anestesia. Esta é a minha chance de respondê-la.

O padrão fisiológico que leva as duas situações são semelhantes: por algum motivo, a ligação que existe entre os centros superiores de controle dos músculos no cérebro e os próprios músculos é bloqueada, fazendo com que, mesmo que você tenha a intenção de mover alguma coisa, você não consegue, simplesmente porque esta informação não chega às fibras musculares. No caso da anestesia isto é obtido através de drogas semelhantes ao velho veneno das zarabatanas: o curare.

A questão principal que direciona a sua pergunta é a inarrável angústia de não conseguir controlar o próprio corpo, e estar consciente disto. Acredite, sei porque já passei por isto. Consciente e curarizado na mesa de cirurgia escutando a conversa dos cirurgiões, sem saber se vivo ou morto. Naquele momento fiz uma promessa que não levaria muito a quebrar: daí para frente seria diesel sobre rodas ou combustível de aviação, nunca mais gasolina em (duas) rodas.

Eu me lembro do parachoque crescendo, de outro carro vindo, do vôo sem asas. Agora imagine-se abrindo os olhos - a sensação é exatamente esta: "abrir os olhos" - e eles não abrem. Você sente cada movimento e cada manipulação que fazem no seu corpo, mas não é capaz de reagir. Até a dor faz falta! Você não sente dor. Sente a pele sendo cortada, seus tendões e ossos tracionados, imagina que isto lhe faz mal. Só. Aquela sensação afetiva ao estímulo nocivo, a que chamamos de dor, foi embora com a morfina. Sem dor, sem movimento, sem luz. Onde você está afinal? A decepção não poderia ser maior: até do céu eu esperava mais que isto. Nada de túnel de luz, nada de São Pedro, nada de nada.

Aqui eu me lembro história narrada pelo Dr. Neil R. Carlson que uma vez perguntou ao seus alunos qual seria a função do sistema nervoso central supondo-o como morada de nossas funções cognitivas superiores, a resposta foi unânime: "pensar". Tivesse eu obtido esta resposta, teria perguntado qual seria a vantagem evolutiva do "pensar" e porque seres pensantes teriam sido selecionados sobre os não-pensantes, a resposta no entanto poderia vir como o "pensar" sendo simplesmente uma "calda de pavão" usada para impressionar as menininhas pré-históricas e assim conseguir mais descendentes que pensem. Dr. Carlson, no entanto, fugiu desta discução estéril e então continuou sua aula, conforme descreve em seu livro "Fisiologia do Comportamento", mostrando que a principal função do pensamento é controlar o nosso comportamento, ou seja: as funções motoras de nosso corpo. Para isto ele serve, para isto ele evoluiu.

Sendo o normal a ação funcional de algo sobre aquilo para o qual ele evoluiu e sendo a medicina a arte de sobreviver frente ao anormal, sou levado a indagar: Como reage o pensamento quando exposto a uma incapacidade de cumprir as sua função primordial, ou seja, controlar o corpo?

Na biologia, diz-se que algo que perde sua função com o tempo deixa de existir, isto parece ser, de alguma forma, claro para aqueles que já passaram pela sensação de não saber se vivo ou morto. Pois uma vez que desconheço alguém que se lembre de ter estado morto, nunca ninguém foi capaz de apontar as diferenças entre os dois estados e, por mais, que tentamos fingir que o nosso corpo é apenas um apêndice para uma parte mais elevada chamada "espírito", para todos os fins práticos ele é tudo que temos e, aparentemente, sede de nossa consciência, como bem disse Schopenhauer. A angústia de perder ambos - o corpo e o espírito - embrulhados neste pacote a que chamamos "vida" é o que mantém a nossa espécie neste planeta até hoje e a minha futura profissão (medicina) sempre entre as mais bem pagas.

Tal angustia, acredite, é horrível. Ficamos face a face com todos os maiores dilemas da filosofia enquanto a mente gira descontrolada. Leva um tempo para se superar da sensação cartesiana de não saber se é ilusão tudo que percebemos em nossos sentidos agora ou se eram ilusões os delírios do corpo aprisionado em grades de curare. A única certeza, bem disse Descartes, é que se eu sou capaz de imaginar que estou escrevendo algo, logo eu, de alguma forma, existo.

Sid

sexta-feira, setembro 29, 2006

Meu Rei

Desta vez era a janela, ou o vento que saía dela. Sempre era alguma coisa e isto me deixa preocupado: as pessoas que gostam de odiá-lo estavam ficando mais numerosas do que as que odeiam gostar dele. Colhia a história do paciente no leito ao lado da janela quando o barulho da discussão ficou insuportável. Fui intervir, afinal ele tinha prometido para mim comportar-se.
As desculpas eram sempre muitas, das quais a poucas se dava atenção. Desta vez elas giravam sobre a residente, que tinha cometido o pecado de tratar-lhe mal. Queria ir embora, assim dizia. Tinha muito o que fazer em casa, uma família enorme para cuidar, negócios importantes para gerenciar, não podia ficar perdendo tempo no hospital. Enquanto falava, ia se acalmando. Era sempre assim. Em pouco tempo eu pude voltar ao meu trabalho.
Mas sua personalidade era marcante demais para ignorar e o resto da anamnese ficou contaminada por discussões sobre ele. "Meu Rei" é um senhor negro, alto, forte, voz rouca e penetrante, nascido em Vitória da Conquista, naturalidade que inspirou o apelido. Capoeira de nascença, agressivo por profissão, confuso, talvez, pela doença: crises hipertensivas haviam gerados pequenos acidentes vasculares cerebrais associados à raras convulsões. Mas nada disto pareceu assim quando colhi pela primeira vez a sua história clínica: A "Queixa Principal" insistia que era "excesso de mulher", na "História Patológica Pregressa" um improvável transplante cardíaco "curado com células-tronco", na "História Familiar" 67 filhos "contando só os que estão no Brasil" e por aí ia.
Informações cuja a minha imaturidade me impede de interpretar e me leva duvidar, existe, no entanto, uma parte de sua história clínica que eu nunca tive nenhuma dúvida: fora agente do extinto Serviço Especial de Saúde Pública.

"Meu Rei" escondia um pouco mais do que detalhes importantes sobre a sua patologia quando devaneava durante a anamnese: ele escondia um período negro de uma medicina em lua-de-mel com o poder político autoritário, o braço armado de uma Saúde Pública que enquanto discursava humanista, mostrava aos excluídos a sua face dura e cruel. Uma Saúde Pública que ainda hoje insiste em tatuar em nossa mente de estudantes de medicina sonhadores e bem intencionados a prepotência da ciência e a soberba do estetoscópio. Aqui aprendemos a idolatrar a arrogância ditatorial de Oswaldo Cruz, que usou o poder contra o povo e a varíola, e a ignorar Rodolfo Teófilo que lutou com o povo contra o poder e a varíola. Assim reproduzimos um comportamento e garantimos a sustentação filosófica e social do poder político vigente.
Meu Rei lutou contra a lepra. Cada marca em seu corpo conta a história de um prisioneiro, julgado, condenado, caçado e capturado para morrer em presídios camuflados de asilos, sem direito sequer à dignidade, cujo único crime foi ter contraído a hanseníase. Ele me confessou temer o hospital, sabia que era lá que os condenados eram "guardados" para morrer, sabia porque muitas vezes fora ele quem os condenou.
Mas os leprosos se vingaram: condenaram também Meu Rei ao seu pior pesadelo: a amar o seu inimigo como a seus súditos. Fora do hospital já não seria mais "Meu Rei", já não teria mais platéia para o teatro que transformou a sua vida. Fora do hospital já não seria mais.
Ele não sabe que eu sei o pecado da residente: a hipertensão está controlada e a epilepsia responde bem à medicação. Em breve Meu Rei terá alta.
Sid

quinta-feira, setembro 14, 2006

Obrigado

Logo que entrei na enfermaria masculina eu percebi as cortinas em volta do leito de número 16: houve um óbito. É uma situação comovente, não obstante eu já tenha me acostumado, sempre me detenho para ver a reação das pessoas em volta, mas desta vez eu procurava uma pessoa específica, cujo leito ficava em frente ao do morto. Com isto fiquei observando a cena tempo suficiente para escutar uma voz, que não me preocupei em reconhecer, perguntar se era meu parente. Sem me virar, observando os enfermeiros fecharem o saco preto e o colocarem na maca, eu respondi que não. A voz, com a resignição usual aos longos habitantes dos hospitais e com um tom que queria dizer bem mais que isto, disse de forma seca: "aqui é onde as pessoas morrem." A depressão, aparentemente, cura-se espontaneamente em uma cicatriz de sarcasmo naqueles que vão perdendo a esperança da alta.
Insistia em procurar o meu paciente pois apesar de saber que tinha tido alta, sabia também que ele só iria embora do hospital depois da medicação no final da tarde. O saco de roupas e o rádio jogado sobre o colchão confirmaram a minha suspeita de que ele ainda estava por perto. Mas não na enfermaria. Encontrei-o sentado na escada e me sentei ao seu lado.
-Soube que você vai embora...
- É... ... ...porque não separam os pacientes muito graves dos que estão melhorando? Porque precisamos ser expostos a isto?
Enquanto eu explicava para ele que juntar todos os "condenados" em uma ala comum seria um ato de extrema arrogância daquele eventualmente responsável pela triagem que acaba por deixar marcas difíceis de serem apagadas naqueles que, eventualmente, conseguem sobreviver conforme demonstra a experiência em hospitais onde isto acontece. Por isto lá não era assim. Mas enquanto eu explicava a ele, eu ia me lembrando de como ele chegou, há quase um ano.
Fraco, contorcendo-se de dor e com os olhos profundos de tristeza e humildade. Me lembrei da primeira vez que o vi. O professor indo repassar as anamneses, e ensinar a avaliação dos sinais vitais. Tínhamos que sentir o pulso dele, primeiro o radial, no punho. A cada aluno, o professor pegava o punho dele que ele insistia em apoiar a cabeça, cada vez de forma mais agressiva, como se dissesse: "deixe o seu braço aqui, não vê que estou dando aula?". Furei a fila dos colegas, peguei o cobertor que estava enrolado ao lado de sua cabeça e, enquanto ele me olhava assustado, apoiei a sua cabeça, enquanto ele tentava se desculpar: "...é que eu estou sentindo um pouco de dor..."
Mas chegou a hora do pulso carotídeo, no pescoço, e o professor, para melhorar o acesso ao pulso, retirou bruscamente o cobertor o que fez com que o paciente se contorcesse de dor. E começou a mexer com a cabeça dele para lá e para cá. Quando eu disse: "Professor, o paciente está com dor." Óbvio que esta foi mais uma das minhas intervenções inconvenientes. E eu prendi a lição de que os pacientes de um hospital universitário servem exclusivamente para que estudantes aprendam medicina. Afinal, alguém tem que fazer o sacrifício para que seres tão especiais sejam formados. Ou você prefiria que não existissem médicos?
O tempo foi passando, e eu fui mantendo as visitas a ele, fui tentando mostrar que, apesar de ser o X do leito Y ele era um ser humano e como tal deveria ser tratado. Passava lá para rever as aulas de sinais vitais, nas quais eu sempre pedia para que ele me guiasse em seu próprio corpo: "Meu dedo está perto de onde pulsa? Me avise quando parar de 'sentir' o barulho..." Deixava claro que estava aprendendo e que nada daquilo contribuiria para a sua melhora, mas exclusivamente para a minha. A franquesa me fez conquistar a simpatia e ele sempre me perguntava o que eu tinha aprendido em aula. Que excelente exercício era explicar a ele!
Hoje ele estava lá. Ainda de aparência frágil, mas andava pelos corredores sem dor e era capaz de exigir um tratamento digno. Não éramos tão diferentes assim, um do outro, sentados na escada atrapalhando o fluxo de pessoas ocupadas...
Ficamos um tempo em silêncio, como se houvesse tanta coisa a dizer um para outro que simplesmente não valia a pena começar a tentar. Ele, afinal, tinha que ir para casa, levantou-se portanto. Ohei para ele e, mais como amigo, disse que agora ele tinha que se alimentar direito, fazer algum esporte e... ...procurar os Alcóolicos Anônimo. Abaixou os olhos concordando.
Quando ele se virou para ir embora (talvez tenha dito algo demais), estendi a minha mão a qual ele apertou com o olhar assustado do primeiro dia em que o vi. Alguns segundos sem dizer nada, tomei coragem e disse: "obrigado". Pela primeira vez senti dele um aperto forte, seus olhos mudaram para uma expressão de curiosidade que foi verbalizada com um "por que?".
- Por me ensinar medicina.
Nunca nenhum professor fez algo pelo qual ele não estivesse sendo pago para isto, ele não estivesse com a obrigação social e moral de fazer. Ele não. Fez por favor. Devemos ser eternamente gratos a nossos pacientes.
Sid

sexta-feira, agosto 18, 2006

Game Over

Vim dirigindo confuso. Não foi fuga, apenas consegui o que queria: até que enfim um morto. Não tinha mais nada para fazer no hospital. Enquanto não for por obrigação, eu mesmo faço o meu horário. Em casa, a mente teimava em desobedecer o corpo cansado e e lutava contra sentimentos que insistiam em buscar espaço. Tive que levantar e escrever.
Ele deu entrada no centro cirúrgico agora já fazem mais de 12 horas. Dor abdominal profunda. Diagnóstico óbvio: apendicite, assim trouxe o SAMU. Na emergência enviaram para uma cirurgia exploratória, que de tanto explorar encontrou o que não queria, nem sequer imaginava: um aneurisma de aorta. Roto.
Isto muda tudo: prótese, plaquetas, correria. Daí para frente, como que se ele decidisse me dar uma lição (como sou egocêntrico), segue-se a sequencia interminável de notícias ruins, do hematócrito que chegou a 13 à saturação que chegou 40%. A primeira parada e a mão do cirurgião vai direto ao coração, como em um poema mal feito, insistindo em uma rima sem nexo, de tanto apanhar o coração parecia desistir de bater.
Cedo demais para sair da sala, uma nova parada na porta do CTI. O intensivista fez menção de subir em cima, e o cirurgião quis abrir de novo. Mas nada, nada foi feito. Nada podia ser feito, todos sabiam disto.
Ele me olhava, esperendo que o branco dos meus olhos ficasse vermelho, percebi um prazer sarcástico nele, que foi-se, pois só agora mudaram de cor, vencidos pelo cansaço. Por um momento ele esqueceu que perdera o paciente, pelo menos alguma dor eu consegui aliviar. Eu que tanto tenho criticado os médicos, desta vez eu não posso deixar este meu último comentário ser mal interpretado: ele fez de tudo para salvar aquela vida, mas preocupava-se agora com as próximas vidas: as que viriam em minha mão, seu discípulo, pelo menos por uma noite.
Todos fizeram de tudo para salvá-lo. E quando ele morreu, eu não posso dizer o que sentiram, apenas o que eu senti. Como na visão de um de meus críticos, a vida, pelo menos a que está em cima da mesa, diz-ele, para mim não passa de um joguete. Talvez. Talvez eu racionalize a vida para evitar enfrentar a morte. Talvez sejamos doutrinados a isto. Hematócrito, saturação, pH, pressão, frequência... Números. Mas na mesa está alguém igual a mim, igual ao que eu fui, sou ou serei. Com pessoas iguais as que me amam esperando lá fora.
E nós jogando. Aumentando isto para diminuir aquilo. Desta vez perdemos o jogo. Esta foi a sensação que eu tive primeiro. Agora eu não sei mais. Por mais que eu deteste admitir, meu crítico está certo.
Mas aqui, neste centro cirúrgico, o que importa não é salvar vidas? Amenizar o sofrimento, paliative care, isto é para depois, se ele sobreviver à mesa.
Sid

quinta-feira, agosto 17, 2006

Assassinos

"Não sou melhor que ninguém. Sei que não posso julgar ninguém. In dubio pro societa. Apenas envio-os para uma instância superior que saberá julgá-los: Deus"
Doutor de terno e gravata. Suprime a necessidade de outros dois poderes: legisla em causa própria, julga como Deus e executa. "Apenas faço o meu trabalho, não vê?" Não vi nada mais que carne humana sobre ossos de hipocrisia. Esta minha mania de dar idéia aos pacientes, ainda pode me matar.
No quiosque, fora do hospital, às 2:25 ele falava de bandidos. Professor de epidemiologia ele sabia do que estava falando, afirmava sem titubear que não havia nada melhor que o tráfico para a saúde pública: mata jovens que não apresentam ainda as cronicidades da vida e mata em alta velocidade, não sobrecarregando o sistema. Queria apenas falar da frieza da medicina quando se pensa em números. Criticam a ideologia por trás de usar a verba da Saúde para a Bolsa Família, mas poucos têm a coragem de criticar crueldade de se gastar com alta complexidade em um país que ainda se morre da doença mais curável do mundo: a fome.
Queríamos discutir política, queria ter a oportunidade de dizer que a vaidade científica e o orgulho técnico influenciava mais as decisões do Ministério da Saúde do que a busca pela justiça social. Mas a acadêmica queria ouvir histórias de heróis, fardados ou não, defendendo donselas. Eu também um dia quis heróis críticos e conscientes, quis fazer estas histórias, mas eu só vi assassinos. Tão cruéis quanto os que sustentam palácios de "excelência médica", delírios milionários da Bélgica dos sonhos em plena Bangladesh em guerra civil.
Um destes assassinos, no entanto, eu até aprendi a admirar: com orgulho de ter construído tal admiração com o sacrifício de meu próprio corpo. Pai zeloso que me entregou seu próprio filho com a recomendação: "Mostre a ele o inferno". Este é um ser superior, que cumpriu tudo aquilo que pregou, que construi valores acima do reino de hipocrisia, que lutou por tudo que acreditou, que foi libertário quando era para ser carrasco, que foi assassino quando era para ser medroso. Que de Deus só quis aquilo que ninguém Lhe pede, e recebeu a sua parte para sempre: ódio e medo de fora da caserna e desprezo de quem lhe deu a reserva; a luta e a tormenta.
Eu vi tal super-homem chorar duas vezes: a primeira quando eu perguntei "porque?", a segunda quando leu o título do meu presente: "Além do Bem e do Mal". O único comentário que fez até hoje, foi perguntar-me se o livro foi escrito há muito tempo...
Ainda tentei mais um vez: sedento de sangue, atormentado pela doença, e além do bem e do mal, eu lhe dei "Ecce Homo". Apenas para ouvir que "este tal de Nietzsche era um herege", como se matar não fosse pecado.
Mas daí eu tirei uma grande lição: pecado não é ir contra a "lei", mas criticá-la. Herege é aquele que ousa. Que desvenda a capa de ilusão que abre os olhos e vê. É preciso ser forte e bravo. Não inveje a coragem daqueles que matam, pois você não sabe a sua atitude quando não tiver outra coisa a fazer. Não é coragem fazer o que esperam que você faça.
A capa da "lei" é forte demais para ser vencida por qualquer um: é contruída sobre dor. Na faculdade viramos noite, sofremos com os professores, estudamos e decoramos sob o nome de "aprender". Como recompensa ganhamos migalhas de notas suficientes. Isto tem que ser importante! Assim é contruída a "lei", aquele que disse que isto não é importante, não é o certo, não é assim é um herege cujo destino é a fogueira, a Santa Inquisição.
No quartel, as coisas são menos sutis, mas eles te dizem o que vão fazer, como será e porque. Dão luz aqueles que podem ver, mas quase ninguém pode. Só não chamam de "dissonância cognitiva" porque militar é tudo burro, tem um nome menos pomposo: "síndrome de Estocolmo": é o que você deve fazer com o seu prisioneiro de guerra.
Quando meu pai quis que eu virasse "homem", me levou para onde os homens estão. Aos quinze anos de idade eu não pude compreender mas entendi o olhar do prisioneiro que me dizia ser mais livre que o "filho do doutor", pois era livre da sociedade que ainda me oprime, tanto tempo depois, chocava a hipocrisia reinante admitindo em tatuagem no braço: "mato porque gosto".
Coisa que o sargento do Batalhão da Caatinga não teve coragem de admitir, enquanto me mostrava toda a tecnologia do sertão: fuzil M-16 com mira telescópica, óculos de visão noturna e a caçamba do 4x4. Falava com orgulho de quem reproduz uma antiga história: "Quando o seu dotô governador pediu ao coronel que prendesse os bandidos e acabasse com os assaltos por cá do São Francisco, seu coroné foi Macho: 'Ou eu prendo os bandidos, ou eu acabo com os assaltos'"
Os urubus que sobrevoam a estrada entre Cabrobó e Nova Floresta, entretanto, sinalizam os corpos largados à beira da estrada, mas esquecem de dizer que nem ninguém foi preso nem se acabaram os assaltos. Mas a velha ordem das coisas se manteve e isto, afinal, é o que importa.
Mas para cá do rio, em Euclides da Cunha, o outro lado da guerra, o lado que sempre sofreu, não teve a mesma sorte dos Macacos High-Tech: "Eu conheci para mais de 20 irmãos meus, enterrei eu mesmo quinze. Perdi uns cinco de doença, os outro foi na ponta da faca. Eu nunca vi polícia aqui no sertão brabo. Homem que não mata aqui, morre". Reclamava, lamentando a única vez que viu a polícia: levaram sua namorada de 15 anos, que tinha matado a pedradas a ex-esposa. Me mostrando que o valor de nossas certezas pode mudar conforme a geografia.
Estas são as grades que nos prendem: o valor que damos as coisas, pelo simples fato de termos sofrido para conseguirmos.
Quando eu entrei para vê-lo, escutei o seu guardião reclamar de tédio. Na custódia não se bate em ninguém, não se mata ninguém. Eu vi o medo em seu olhar, disfarçado de ódio à medicina, como se a morte fosse, necessariamente, erro médico. Longe do fuzil fálico que sempre representou a sua vontade de poder, enfrentava agora o vazio. E hoje já não desejo mais o medo do assassino, mas a coragem do suicida. É nesta coragem que espero liderar meus pacientes.
Sid

domingo, agosto 13, 2006

O dragão de Poliana

Fechei os olhos e vi o dragão de Poliana. Imaginei como seria e por onde andava. Solto a cabeça e sinto o seu fogo. O que me liga a ela, me lembra mais tatuagens. No peito escrito "GOTHIC", mais abaixo, sangue. Também havia dragões, mas não o dela. Tinha uma facada no flanco direito. Entrou preocupado no centro cirurgico. Tinha que fazer uma ligação, talvez fosse para avisar a Poliana que tinha sido ferido em uma briga. Eu dei meu celular sem cartão, mas não podia ser a cobrar. Uma pena. O anestesista percebeu o diálogo e riu com um carinho que provavelmente o moicano não via há muito tempo e disse: "Você agora tem outras coisas para se preocupar... Relaxe... Daqui a pouco você vai dormir." Obediente, ele fechou os olhos.
Entra o senhor doutor cirurgião. Rindo e comprimentando a todos. Olha para os residentes e diz em tom obviamente irônico: "Não me venham com perguntas imbecis, eu odeio estudante, já nasci staff." Tenho que admitir que teve paciência em todas as perguntas que foram feitas.
Ao olhar o paciente, enquando a enfermeira retirava os brincos e piercings (com bisturi elétrico não se brinca), viu as tatuagens, o corpo sarado nu e exposto, deixou transparecer uma contra-transferência inconveniente para o momento: "Um sujeito desces que se fura todo, só pode ser vontade de dar o cu."
Teoria interessante. A primeira coisa que me veio a cabeça foi esperar o sujeito melhorar e ir se oferecer gentilmente ao cirurgião para colaborar em pesquisas que relacionassem metal perfurando a pele com tendências homossexuais. Mas não vou mudar o mundo, é melhor deixar para lá. Homossexual ou não, afinal de conta, isto não era algo para ser discutido na cirurgia, até porque não faria a menor diferença.
Mas reflete nitidamente o que aprendemos: o paciente é um pedaço de carne, um modelo para nossas teorias, um apêndice desagradável da doença. Poliana me disse que no hospital é onde nascem, adoecem, tratam-se e morrem os valores morais de nossa alma. Ela me diz tanta coisa, me disse também para ler Foucault, já tinham me dito antes, mas nela eu acredito.
Ele ainda insistia: disse que odiava parto natural. Nada mais desagradável do que ficar convencendo estas desesperadas a parir, "faz força de cocô, mãe", isto é coisa que um médico diga? Claro que não, ele tem que poupar saliva para chamar os outros de viado. A cesariana é muito melhor: o cirurgião chega, a mãe está apagada, vai, corta, e entrega "aquela porra estridente" para o pediatra. Lava as mãos e vai embora.
Eu já tinha visto uma cesária. Quando o meu amigo me perguntou, eu disse que senti nojo. Não dos fluidos corporais, mas justo da assepsia. Tudo muito quieto e muito limpo. Não é como na ambulância da FUNASA, quando me senti "médico" pela primeira vez. 3h da manhã e a índia gritava, disse o motorista, só estamos nós dois, é contigo, doutor... Ele já tinha feito vários partos, eu, nenhum. Ficou o tempo todo do meu lado, me ajudando e dizendo o que fazer, sem a arrogância do staff. Retribuí o favor ajudando a lavar a Toyota...
Voltava a mim e via todos concordando com o doutor, enquanto ele buscava mais lesões no paciente. Técnica e responsabilidade ele tinha. É um ótimo cirurgião. Agora eu me lembro o verso de Nietzsche: "A seis pés acima da terra, à aurora, e abaixo de mim: o mundo, os homens e a morte." O cirurgião estava realmente acima de tudo, acima inclusive da moral que morrera ali mesmo naquele hospital.
Ética e moral. São diferentes. Moral é a ética escrita, ética é a teoria e cultura que determina. O problema destrinchado em sua essência é de ética. A moral dele está de acordo com a ética que se espera de sua posição, se minha ética não está de acordo, problema meu, o errado sou eu.
Pela minha cabeça passam os comentários sobre meus sentimentos no Blog, vejo que sou, assim como ela, um correspondente de guerra. Talvez escute as baterias anti-aéreas que sempre quis. Me vejo tocaiado, em território inimigo, selvagem cão de guerra em ação de comandos lançado na selva com a faca afiada e uma pedra de amolar, me vejo aguardando para matar aquilo que estou prestes a me tornar. Serei esfolado vivo. O progresso, Mársias, não pode ser detido. Fui delatado, me encontraram. Charlie-charlie, o campo de concentração, sem a menor esperança da Rede de Apoio à Fuga e Evasão...
Quando a moral e confrontada, agoniza e morre, resurge das cinzas uma nova ética que alivia a dor da imoralidade. Ética médica, máfia de branco, eu vou lutar até o final.
Sid

sexta-feira, agosto 11, 2006

Virtudes Públicas, Vícios Privados

Já se faz quase um ano que tenho o Blog. Nesta longa existência muito pouca gente entrou nele. Resolvi então divulgá-lo. Não sei se foi por vaidade, acho que foi, mas pode ter sido também para me testar, para ver se estou conseguindo passar para as pessoas o que eu sinto. Ter um feedback.
Alguns comentários me chamaram muito a atenção. Bom, os elogiosos a gente agradece mas esquece. Mas as críticas são fundamentais.
Eu percebi especialmente que falar mal de si mesmo não é sinal de virtude, como eu esperava, confessar fraquezas e incapacidades, mediocridades e egoísmos, é um pecado maior que tê-los. Se no meu Blog eu ficasse falando mal de tudo e todos e dizendo o tempo todo que senti compaixão e pena, eu seria um santo. Eu não quero isto: eu quer ser humano, mesmo que demasiadamente humano para ser compreendido.
Eu quero ter a liberdade de gritar meus preconceitos, falhas, medos e incapacidades!
Não quero rebater a minha crítica como alguém ofendido. Teria toda a liberdade para dizer-me vaidoso e magoado. Mas não é o caso. Estou realmente agradecido. Pois me mostraram uma coisa interessante, que eu não tinha percebido.
Fosse o meu Blog dedicado a literatura, eu estaria indo por um caminho totalmente errado: vícios privados chocam as pessoas. Mesmo quando se demonstra que eles incomodam a quem os tem o suficiente para tentar excomungá-los em um Blog, escrevendo.
Virtudes públicas fazem mais sucesso. Realmente, eu juro, imaginei o contrário.
Poderia dizer que o interesse do meu Blog não é literatura, mas exatamente excomungar os meus defeitos. Mas talvez realmente a crítica seja bem-vinda. Não me escondo a possibilidade de um dia querer abraçar uma maior quantidade de leitores, tenho que, portanto, ficar atento ao desejos, medos e vontades deles. Assim como dos meus pacientes. Não seria isto, portanto, um bom exercício?
Sid

quinta-feira, agosto 10, 2006

A inteligência no abismo

Escutei duas senhoras conversando no ônibus: aparentemente alguém teria recusado um filho com síndrome de Down, alegando que seria um "estorvo". Aparentemente uma médica teria dado um discurso "lindo" sobre a vida e sobre a importância de aceitar-se um presente de Deus, seja o que for. Isto parece fácil demais com a vida dos outros. Mas é certo que as pessoas precisam aprender a assumir responsabilidades, mas cabe à equipe de saúde auxiliar neste caminho, compreendendo o quanto é difícil, às vezes por razões mais práticas que emocionais: falta de dinheiro e tempo, real.
Mas isto é óbvio demais para ser comentado aqui.
Eu fiquei pensando na minha atitude. Em todas as crianças excepcionais que eu vi. Fiquei pensando o quanto eu odeio crianças. Acho lindo o bebê rosadinho no colo da mãe ou um pequeno ser aprendendo a correr. Nada mais bonito que um sorriso inocente.
Mas o choro faz a minha alma doer de uma forma que eu não consigo controlar, ou sequer entender. O sofrimento infantil me faz perder qualquer resquício de racionalidade. Isto simplesmente não pode acontecer. Odeio crianças. Mais ainda as excepcionais.
Mas mesmo assim eu me vi, Médico de Família e Comunidade me deparando com o problema. Abraçando um excepcional e chamando de "meu amigo". Pura hipocrisia. Não, não posso ser hipócrita. Tenho que ser sincero em meus sentimentos. Este é o meu conflito.
Enquanto eu vejo o abismo eu temo aquilo em que posso me transformar: frio, calculista, cruel, hipócrita - médico. Mas talvez haja uma opção que não seja absorver o abismo, nem desistir de enfrentá-lo: é jogar-se nele. Encarar o sofrimento humano com a coragem que um suicída encara a morte.
Talvez se eu compreendesse o que torna alguém "meu amigo" eu poderia ser menos hipócrita. Talvez eu também compreendesse que não é o processo que me fará médico que me tornará hipócrita e calculista, talvez eu visse assustado que eu sempre fui assim. Só arrumei uma justificativa para deixar isto transparecer.
Gostaria de recuperar a referência, mas foi-se. Eu li um comentário que dizia que desprezar os textes de QI era como jogar o bebê junto com a água que o lavou (uma expressão que os americanos adoram). O problema não é o texto, não é fazê-lo, não é considerá-lo importante e não é nem o fato de usá-lo como uma determinação objetiva da inteligência. O problema é o valor que damos subjetivamente a inteligência. A nossa dificuldade de definí-la e compreendê-la (argumenta) vêm do fato que a consideramos um padrão-ouro do valor do ser-humano. E não simplesmente uma característica própria do indivíduo, como o é a beleza, a honestidade e a coragem.
A inteligência pode ter vantagens para um candidato a amigo. Um discurso interessante e idéias novas que nos fazem pensar podem ser divertidas. Mas a beleza de um comentário inocente também. Se eu procurar o que deve ser importante nas pessoas encontrarei onde eu menos esperaria. Durante este processo que ainda vai durar alguns poucos anos, espero mudar a ponto de ser sincero em meus sentimentos com o feio, o sujo, o pobre e o burro.
O amor me fará aliviar o seu sentimento.
Sid

terça-feira, agosto 08, 2006

De que lado você samba?

Eu vi a viatura da Polícia Civil chegando junto comigo pela emergência. Deixaram o colega e foram. Um comportamento que me chamou a atenção. Parece que também chamou a atenção de uns soldados PMs que estavam aguardando notícia do companheiro ferido. Nem se interessaram muito e dar detalhes. Largaram o cara e foram. Deve ser bandido e não colega, pensei.
Subi ao centro cirurgico e enquanto eu me fantasiava de abacate entrou o anestesista e disse: temos um baleado: policial civil, dois tiros no peito. É... Se fosse vagabundo não chegaria vivo ao hospital. Não dei muita bola à primeira impressão... Fomos conversando amenidades até a sala.
Chegou o tal sujeito na sala. Havia um dreno saindo do pulmão e não parava de colher sangue. Já era a segunda bolsa. O anestesista perguntou as coisas de sempre: horário da última refeição, se ele era alérgico a alguma coisa, se ele já tinha feito alguma cirurgia antes e se ele havia se drogado. Respondeu não com a cabeça a todas as questões, mas na última arregalou os olhos.
Cocaína? Depois de alguns segundos imóvel fez que sim, timidamente, com a cabeça. Isto explicava muita coisa. Estava fazendo merda, foi reconhecido e ainda deu trabalho para a equipe de plantão. Não me admira que tenham largado ele lá e ido embora.
Cocaína é uma merda mesmo. A anestesia simplesmente não pegava. Enquanto isto a equipe corria com as bolsas. "Vai acabar o sangue do hospital", disse a cirurgiã staff. "Não vai não", me disse o anestesista baixo: "tiro de fuzil, é muita energia no impacto, quando perfura já está resolvida a lesão"
"Vai, entuba". Me disse o anestesista já me dando o laringoscópio, com a maior calma do mundo. "Eu nunca fiz isto antes". Era a minha chance de aprender. Acho que ninguém estava realmente preocupado com ele... Muito menos eu.
"O que vamos fazer?", "Ele vai acabar com o sangue do hospital..", discutiam os cirurgiões: dois staffs e uns três residentes, não lembro bem. O anestesista calmamente disse em tom irônico, era finalmente a sua vingança: "calma, vejam isto:" Pressão positiva no respirador e o pulmão colapsado se inflou. Tapou os furos de bala, ele parou de sangrar enquanto a equipe olhava atônita.
Diminui a pressão. Retirou o tubo. Mas nada dele voltar. Deu uns tapas na cara, provocou dor. Nada. Cocaína realmente é uma merda. Disse para a enfermeira: "Monitora ele que eu vou jantar", "Você vem comigo?", me perguntou. Afinal, quem se importa?
Saíndo, a vingança não poderia ser mais completa: "O que eu ponho na ficha?" Perguntou a residente em cirurgia. Afinal, tinha mobilizado a equipe, a sala e material. Precisava justificar alguma coisa. O anestesista nem olhou para trás, apenas disse com desdém: "Escreve qualquer coisa..."
Acho que esta futura cirurgiã, por incrível que pareça, viu que tem um colega em quem confiar na sala.
Sid

segunda-feira, agosto 07, 2006

A bruma das provas

Cada vez que faço uma prova, penso em abandonar a medicina.
Não me aceito tão dislexico. Eu acho que estudo tanto... Não sei se mais nem menos que ninguém, mas o meu dia só tem 24h. Porque as minhas notas estão sempre entre as piores?
Enquanto eu procurava razões neuro-quimico-anatômicas que pelo menos me fizessem me sentir melhor, achei um comentário sobre um filme chamado "Fog of War". Parece que sobre a história de um general americano.
Parece que em algum momento alguém comentava que era impossível dominar, nem ao menos conhecer, todas as variáveis da guerra. Taí uma coisa que fez me sentir melhor, mesmo que não valesse como argumento para me tirar das infindáveis provas-finais...
A consciência do fato de eu não consigo acumular o conhecimento de forma explícita dói menos quando justificamos pela impossibilidade estatística de se avaliar todas as variações possíveis. Não importa o que Damásio diga, não me interesse os seus "marcadores-somáticos", eu prefiro a confiança serena na psicossomática do que a arrogância dos cirurgiões.
Morreremos todos, um dia. Que pelo menos morramos felizes.
Sid

sábado, agosto 05, 2006

Deus

"O médico é como Deus"
Andava de ônibus quando escutei isto.
E depois querem nos cobrar humildade...
Sid

Sombra e a escuridão

- Só vemos as sombras. Não há como mudar isto.
Concordei com a cabeça. Sem ao menos prestar atenção. Eu falava mal da administração do hospital e ele queria conversar. Agora já não pode mais falar nada.
Hoje, segundo uma enfermeira, ele tinha acordado assustado: já não via mais nada. Das sombras, agora só lhe restava a escuridão, nem mais a escuridão que não viu pela manhã.
Eu sempre quiz saber qual o trajeto que os corpos dos pacientes mortos faziam pelo hospital, por onde passavam e para onde iam, mas ia ficar para a próxima vez. Não porque estava envolvido demais emocionalmente, mas porque me incomodava mais não estar. Acho que estou pronto para ser um médico.
Sedento por experiências, por algo o que escrever aqui, eu me vasculhava em torno de emoções. Nada. Por mais que eu forçasse era como uma peça de anatomia, era simplesmente "algo" no leito. Uma sombra que se ia. "Não sangra, não suja a mesa. Esta é a grande vantagem do cadáver." Não saia da minha cabeça as palavras do professor.
Às sombras que percebíamos da vida, tentava dar cor e relevo para as dele. De quando eu o vi pela primeira vez: mais um paciente, mais uma alma inferior. Agora eu queria valorizar, tarde demais. Ele fora muito mais inteligente que eu. Aproveitou a oportunidade enquanto eu, mais esperto, não tive a capacidade de aprender com ele o tanto que ele aprendeu comigo: como fala besteira um estudante.
Gostaria de escrever mais. Mas não tenho mais o que dizer.
Sid

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Ferrugem azul

Uma das poucas coisas que ainda me lembro dos primeiros anos de escola é da estória de um garoto que toda vez que deixava de fazer algo que ele sentia que tinha a obrigação, lhe surgia uma misteriosa ferrugem azul. A estória destinava-se a passar uma mensagem clara: devemos sempre fazer aquilo que deve ser feito. O certo, o justo. Esta estória nunca saiu da minha cabeça, apesar de grande parte da minha vida eu quase que pude sentir a tal ferrugem azul escorrendo por praticamente toda as minhas articulações.
Com esta estória na mente, eu pude perceber que nem sempre fazemos o que é para ser feito. Na maioria das vezes, pelo menos comigo, sem razão aparente. Não fiz e é isto. Acho que eu merecia a tal ferrugem. Noutras vezes tive medo, o que talvez, pelo menos para mim justifique a inação. Com o tempo pude perceber também que agir poderia ser pior, mas para isto precisei de uma grande dose de maturidade, maturidade que ainda faz falta hoje em dia.
Aqui eu sinto isto. Sinto minhas engrenagens emperrando e minha pele ficando azul. Sinto a falta de maturidade que deveria me levar a, no mínimo, me conformar em aceitar as coisas que não podem ser mudadas, me levar a amargar a covardia de nem sequer tentar. Algo como a música do Skank: uma indignação que nem sequer ultrapassa as janelas de minha casa, como uma mosca sem asas. É só um estágio. Desculpa suficiente que deveria agir como desengripante spray para a ferrugem azul, mas não age pois o medo, de também não agir quando não houver mais desculpa, impede.
Por este ângulo a sociedade me parece como um paciente. Pede ajuda, mas é preciso um diagnóstico eficiente e, por que não, responder a, e apenas a, demanda. Caso contrário é como tratar de algo que o paciente não considera um problema: simplesmente estaremos fadados ao insucesso e seremos tentados a seguir a desculpa clássica dos tratamentos que não deram certo: a culpa é do paciente. Mas não é. Não podemos querer que o paciente tenha o comportamento, e a doença, que queremos: se curar é nosso único objetivo cabe a nós responder a demandae agir com convencimento.
Perto daqui apareceu uma ONG. Eles queriam dar aulas de informática para as crianças daqui. Crianças que não sabem ler e têm vergonha de admitir que só contam até 10 (como observei). Ninguém apareceu. Este vale não tem futuro. O povo daqui já nasce indolente, ninguém quer nada.
Isto me lembra o que escrevi sobre o sofrimento. Por um lado vejo em mim a crescer o sofrimento em forma de ferrugem azul: um sofrimento que só está em mim, que vem de EU não agir como EU acho que deveria. Um sofrimento que não vêm, necessariamente, do sofrimento do vale, mas sim da minha decepção frente a realidade que não é a que eu gostaria. Um sofrimento que vêm da impossibilidade de transformar esta realidade de forma a encaixá-la nos meus conceitos de certo e errado, pelo simples fato que tais conceitos são meus, particulares e não da comunidade. Este sofrimento eu preciso destrinchá-lo, eliminar as suas causas e atrofiá-lo até que suma, para que possa assim ver a realidade e perceber o que realmente se passa a minha volta.
Eu quero o outro sofrimento. A empatia. O sofrimento que vêm de perceber o sofrimento real dos outros, ver o que eles realmente querem e precisam, o sofrimento que me levará a agir eficazmente em resposta a tudo isto.

Dor que anda

"Tratar dor que anda é foda..." Me disse com pausa para as tragadas. Médico da família e comunidade, era a terceira ou quarta paciente com a tal da síndrome de Munchausen, doença em que o paciente inventa sintomas. Enquanto andávamos entre as casas nas visitas domiciliares, ele sempre me perguntava: "Como é mesmo o nome do tal alemão?"
Isto me veio a cabeça enquanto ele falava no refeitório. "Minha profissão é curar, e aturar, os traumas psíquicos e sexuais dos outros. É isto que eu faço, curo traumas. Quase nada é físico, e mesmo quando é, o trabalho é sempre de amenizar os problemas mentais. Está tudo na cabeça."
O outro cortou o assunto, para amenizar o ton sarcástico, dizendo que doutor fulano de tal, tinha verificado que na grande maioria dos seus pacientes a raiz dos problemas era psicosomática, esta observação o fizera abandonar a clínica e especializar-se em psiquiatria, hoje tinha grande sucesso na psicanálise. A ironia tomou ainda mais forma quando não me segurei e perguntei a especilidade: "ortodontia".
Risos à parte, hoje penso que não deveria ser tão engraçado. Vejo que certo mesmo era o tal doutor fulano de tal, pois se nos propomos a amenizar o sofrimento dos pacientes, não nos cabe nenhum juízo de valor sobre a origem do sofrimento, nos cabe apenas cumprir a função que nos propomos, e que os médicos juraram cumprir: curar. Qualquer sofrimento é psicológico, uma vez que sua origem, somática ou psicossomática, precisa ser avaliada pela psique antes de ser considerada sofrimento, e o que o paciente nos traz, é simplesmente a sua interpretação particular do que ele percebeu. O que interpretamos com a nossa visão e enquadramos em uma doença patologicamente definida. Este é o ponto em que forçamos para que se encaixe no que queremos o que nem sempre coincide com o que realmente é. Assim fulano de tal é que demostrou sabedoria e humildade: teve a rara coragem entre os médicos de dar valor ao tão desprezado sofrimento psíquico, tirando a necessidade de ser somatizado para que seja valorizado e recebe a devida atenção. Mas porque é tão difícil ter esta coragem?
É por isto que qualquer curandeiro quese preze tem um histórico de cura acima da arrogância médica. Por que nos é tão difícil admitir que as substâncias ultra-científicas que idolatramos podem ter efeitos placebo como qualquer reza? E por ser menos tóxica talvez a reza ainda seja melhor. Por que veneramos os "anos de estudo" que tivemos, quando eles nos obscurecem a nossa visão de que grande parte dos sintomas podem er origem psicossomática? Por que insistimos a tentar adaptar os pacientes aos livros ao invés de permitir que sejam quem realmente são? Assim talvez seja mais fácil o diagnóstico e a cura.
Quando teremos a humildade de aprender com os curandeiros? Eu quero curar, seja o que for.

Culpa

"Eu tenho que pelo menos ir em casa pegar umas roupas."
"Você não vai a lugar nenhum."
"Você não vai sair deste hospital enquanto não estiver curado. Você tem leucemia, de forma que eu nunca vi antes, em quase 20 anos de prática médica."
Ele não pode aguentar o choro, acho que ninguém nesta situação poderia.
"É culpa minha... Eu não deveria ter tomado aquele remédio... Não deveria ter pintado a casa... Minha esposa também ficou insistindo..."
"Pare aí. Ninguém tem culpa de ter leucemia."
"Ninguém tem culpa de ter leucemia"
Uma frase de efeito que me pareceu extremamente poderosa na situação, e que não saiu da minha cabeça.
A nossa relação com a culpa é curiosamente poderosa, acho que deriva da crença de que se algo vem antes de outra coisa, deve ser sua causa, dependendo para isto apenas que façamos uma correlação. Acho que já disse isto quando comentei o behaviorismo, mas o que me interessa aqui é o processo pelo qual racionalizamos a doença. Me parece óbvio que para a doença "existir", ou seja, nos incomodar, precisamos racionalizá-la. Precisamos "inserí-la" no mundo, no mundo que construímos. Isto é poderoso, e importante para o médico conhecer, ou pelo menos ter ciência destes fenômenos, pois, se racionalizamos a doença, também racionalizaremos a cura e, voilá: temos o efeito placebo. Que deve ser nosso aliado, um importante aliado.
Isto parece ser uma vantagem dos curandeiros, pagés etc... Eles estão totalmente integrados ao paciente, a sua cultura e suas crenças. Penso que a sociedade em que vivemos não pode ser separada da forma como enxergamos a doença, como a doença se manifesta e como a expressamos, este último fator não pode ser negliqenciado, pois, às vezes parecemos esquecer que é a única, ou quase única, ferramente para o diagnóstico, é o sustentáculo da anamnese. Cabe aqui o porém, que um "curador" de outra cultura pode carregar uma áurea de magia ou poder que pode gerar um eficiente efeito placebo também, mas isto já é outra questão.
Assim temos a medicina holística: ela deve envolver o paciente como um todo, ou como querem nas provas da faculdade: biopsicosocial. Mas isto não é considerado, a não ser pelos curandeiros tradicionais, que não vêem a doença que não integrada na sociedade. Eu busco ser um médico holístico, este é o meu ideal. Mas os médicos "holíticos" que eu vejo por aí não são (necessarimente) bons (ou maus) médicos, são mentirosos.

O sutra do sofrimento

Um título bastante presunçoso, mas uma das grandes vantagens do anonimato é justamente me permitir ser arrogante sem me importar com a "minha imagem" frente a patrulha da falsa modéstia. Mas a arrogânci aqui neste caso mostra a sua face mais incoveniente, pois não sei mais sobre a filosofia oriental do que aprendi em manuais de auto-ajuda e do consegui obter na base do "ouvi dizer", entretanto este título me pareceu conveniente uma vez que o que pretendo comentar é justamente um comentário sobre uma situação ocorrida e não a filosofia indiana (?) em si. Poderia se chamar "chiquinho" também, pois esta é a história de sua curta vida, mais precisamente a única demonstração que teve de carinho e atenção, fato pelo qual os envolvidos deveriam estar felizes por terem deixado esta pobre alma (?) ir com sentimentos menos ruins deste mundo.
Ela quase atropelou a pequena bolinha de pelo que saltava em seu caminho. Como recusava-se a sair da frente, foi obrigada a parar. Como parou, sentiu-se obrigada a socorrer. Desde então foram três dias de cuidados intensivos, corridas a veterinários e preocupações constantes. E também brigas. Realmente não era conveniente mais um cachorro na casa. Não e não.
As brigas perderam o sentido na manhã do quarto dia. Chiquinho, nome dado em homenagem a São Francisco, a quem foi atribuída a culpa por toda a situação, não resistiu mais uma noite e parou de respirar justo no colo dela, embrulhado em um cobertor que já assistira uma morte anterior, uma parente distante que não resistiu ao câncer. Isto ocorreu em Um dia frio e chuvoso, talvez para que parecesse que todo o universo chorava pela morte de Chiquinho.
Enquanto todos tentavam consolá-la, demonstrando que a vinda e a ida de Chiquinho representava um caminho necessário de percorrer por ambos e que disto deveria ser retirado grandes lições para a vida, ela chorava. Obviamente sofria.
Alguém então lembrou as quatro verdades do budismo:
1- O sofrimento existe.
2- O sofrimento possui causas identificáveis
3- Identificando as podemos eliminá-las
4- Eliminando as causas, eliminamos o sofrimento.
Este mesmo alguém lembrou que o caminho para a iluminação passaria pelo conhecimento e aplicação destas verdades, livrando o homem assim do sofrimento. Não deveria haver sofrimento no Nirvana.
Simplesmente não adiantou. O sofrimento continuou e, aparentemente, não havia nem o interesse em eliminá-lo. Uma recusa formal a se atingir a iluminação? E isto seria essencialmente ruim? Seríamos obrigados a seguir os caminhos dos grandes mestres?
Pode ser. Mas recapitulando a históia eu me lembrei de um mestre budista que, ele mesmo, disse que não queria ir ao Nirvana, simplesmente por que lá não haveria limões. Limões, por serem amargos não deveriam ter espaço no reino da perfeição. Ele gostava de limões. Assim como achava que tornaria-se um homem, e um budista, mais feliz e realizado se, em vez de buscar a auto-realização egoísta, ficasse neste mundo lutando pela salvação de todos.
Acho que no fim de tudo ela, e seu sofrimento, estavam com a razão. Pois, no fim de tudo, acho que posso concluir, ciente das limitações da linguagem, que existem (pelo menos) dois tipos de sofrimento: um que deve ser evitado, pois nos impede de agir e de seguir nossa principal meta na vida: a felicidade, nossa e daqueles que nos cercam, que me parecem interdependentes. Mas a outro, que contribui para a evolução, que ao invés de impedí-la de agir, motivou-a, inclusive a pensar sobre a sua própria vida e a construir uma bela sepultura a Chiquinho, carregada de desejos (expressos) de que todos os seres vivos sejam respeitados e protegidos. Talvez a grande parte deste sentimento deveríamos chamar de empatia. Algo que eu sinto falta em muitos médicos e talvez até em mim mesmo. Algo que eu deveria lutar para ter. Isto talvez porque insistimos em confundir os dois tipos de sentimento. Chiquinho portanto deixou esta lição e levou a ela a seguir à risca o conselho de um médico muito famoso: endureceu, mas não perdeu a ternura. Nem a empatia.