domingo, junho 22, 2008

A questão no CTI

(Tradução minha)
O que será mais nobre para a alma: aguentar os ataques do destino ou lançar-se sobre seu tempestuoso mar dando-lhe fim, ao tentar resistir? Morrer é apenas dormir, dormir um sono que acaba com as dores do coração e os golpes que vêm da própria carne, esta é a solução que se deseja: morrer, dormir. Dormir e, quem sabe, sonhar. Eis aí todo o problema: que sonhos virão tão logo nos livrarmos das amarras que aqui nos prende? Pois é isto que nos faz parar, é este respeito que torna uma calamidade uma vida assim tão longa.
Quem afinal aguentaria os golpes e o desprezos do mundo, como se a paciência fosse um mérito que simplesmente não valesse a pena quando tudo poderia ser resolvido com uma faca desembainhada. Quem aguentaria tudo isto? Doando seu suor e sangue para suportar uma vida tão cansativa se não fosse pelo medo do que poderia haver depois dela, um país de onde ainda nenhum viajante voltou, terra que desafia a vontade de viajar dos males que conhecemos para aqueles que sequer imaginamos. Esta é a consciência que nos transforma nos covardes, transformando a força selvagem da resolução na pálida máscara dos pensamentos.

Talvez isto explique o que estou fazendo aqui agora.
Ou o que eles estão fazendo em minha frente.
Afinal qual a diferença entre nós?
Ao contrário deles, eu posso tirar minha própria vida, eles dependem de mim para isto.
Mas fora isto, nada do que a superioridade aparentemente tão óbvia, tem afinal, algum valor.
Viver, morrer.
As amarras que nos prendem são as mesmas, a covardia que nos angustia também.
Posso sair daqui andando, fingindo que isto não passou pela minha cabeça, fingindo que nunca estarei aqui, fingindo que quando estiver terei esperança.
Esperança de que?
De voltar tudo como era antes?
E que valor tem isto?
Não seria melhor poupar me de tudo isto, com uma faca de desembainhada?
O que me prende aqui, afinal?

domingo, junho 15, 2008

Herói

Eu o percebi quando ele se levantou, aquele homem enorme iria achatar a pobre mulher, preocupação que ninguém parecia ter, não obstante o trabalho que iria dar caso isto ocorresse. O gigante mal conseguia andar, as pernas, que um dia já devem ter se orgulhado de sua força, não sustentavam mais todo resto, mãos grossas, outrora tão poderosas, já não prestavam nem para apoio ou equilíbrio, de tudo, só lhe restava o amor da esposa.

No caminho do banheiro ele me disse quão ruim era ficar doente, especialmente quando a causa era desconhecida, mais preocupado com meu aprendizado do que com o sofrimento daquele homem, decidi examiná-lo. A história, que de inicio me pareceu fascinante, para ele certamente era dramática e, em segundos, encaixei seu florido quadro de sinais e sintomas em uma elaborada teoria de manifestações para-neoplásicas e como que se descortinassem a meus olhos uma velha história mal-contada logo percebi uma massa paupável no quadrante superior esquerdo do abdome e um linfonodo como o da velha freira, irmã Maria José.

Insisti com a equipe que deveríamos melhor avaliar o paciente, exigi uma ultrassonografia abdominal, bioquímica e hematologia. Ninguém parecia dar tanto valor ao doente como eu e, naquele momento me senti importantíssimo a ele, perigosamente importante, talvez, nunca iria imaginar que o perigo seria para mim, e não para ele, se o câncer o corroía, ele, afinal, estava no melhor lugar onde poderia estar, assim como eu, também estava no melhor lugar onde poderia deixar-me corroer pelo pecado que supostamente seria o preferido do diabo: a vaidade. Sentir-se importante para alguém e julgar ter feito uma descoberta "fundamental" é algo que desafia a nossa humildade e destrói a nossa capacidade de ver o mundo como ele é e nos cega com imagens de como gostaríamos que ele fosse.

Pois que a bioquímica revelou-se surpreendente e a hemato algo bem longe do para-neoplásico. O quadro, embora urgente, não era necessariamente crônico e, desafiado a provar os sinais que eu tinha visto, provei a mim mesmo incapaz de um exame físico confiável, na frente de uma pequena junta e de meus pares, o meu linfonodo era uma hérnia umbilical e não havia massa, mas apenas uma tensão em um paciente que fora examinado sentado. Não há exceções para o certo, disse, sem esconder um ar de reprovação, o professor.

Poucas vezes o caminho de casa me pareceu tão longo. Estava me acostumando a vitórias o que transformou a pesada lição em uma multifacetada conjunção de ensinamentos, quisera eu ter a sabedoria de aproveitá-los e nunca mais esquecer. Uma noite em claro e pesadelos de assassinato: teria eu, se pudesse, enviado aquele homem a quimioterapia?

Tudo bem... Não serei tão dramático, afinal nenhuma atitude seria tomada sem que antes eu solicitasse um parecer de um oncologística, mas quantas alucinações semióticas e delírios diagnósticos eu ainda sofrerei, o quanto eu preciso para ver somente a luz que entra nos meus olhos, escutar apenas o que é me dito? O que eu ainda preciso fazer para ter este dom, sua falta, certamente é bem pior do que uma incapacidade médica, para compensar isto, basta estudar, mas como compensar a esquizofrenia clínica.

Eu tinha dito a ele que o visitaria no dia seguinte. Não fui. Envergonhado de minha atitude, preferi esquecer, mas a culpa por ter abandonado sem esquecê-lo foi como vinagre sobre sobre a ferida ainda mal curada. No corredor da emergência, encontrei sua esposa, embora tenha tentado ignorar-la, ela me reconheceu e vei me falar.

Assumi minhas fraquezas e confessei minhas vergonhas, disse-lhe que preferia e que muito tinha desejado ver o marido dela com um triste diagnóstico de câncer, pois isto apaziguaria dor de minha alma, não me importando agora o sofrimento que ele mesmo pudesse ter. "Para nós você ainda é nosso herói", disse ela, "não fosse sua insistência em um diagnóstico de câncer, ele não estaria vivo agora".

Herói. Será que todos os heróis são estes covardes e inconseqüentes que eu fui? Será que tudo nos livros de história resume-se em coincidência e hipocrisia? Não quero que o elogia reacenda a chama da vaidade que estou e esforçando para apagar, nem quero nem imaginar o que teria acontecido caso a minha hipótese diagnóstica tivesse sido menos "espetaculosa" e, conseqüentemente, interessante.

Mas o que importa é que eu agora era um herói. Me lembrei do filme homônimo, cuja cena final muito me impressionou: o herói sendo alvejado por milhares de flechas, ele que poderia ter cumprido seu papel e saido ileso, preferiu ser morto, pois esta era a função do Estado que ele decidiu preservar com todas as injustiças inerentes, qualquer outra opção, pensou ele, seria pior, como narrou a voz de fundo: “morto como traidor, enterrado como herói”

Me sentiu igual, posso preferir o orgulho de ser herói, mas prefiro me concentrar nas setas que me apontam à realidade: falhei e falhei feio. Posso me enganar quanto a diagnósticos, posso errar quanto a fisiopatologia, mas jamais deveria ver outra coisa que não a luz que chega a meus olhos, jamais deveria deixar que interpretações modifiquem percepções, fatos deveriam ter mais peso que explicações. Que as flechas matem este louco.

Afinal que vaidade me levaria a importar-me com tão insignificante heroísmo, um paciente, dentre tantos naquele hospital, uma vida dentre tantas que lá já morreram, um hospital dentre tantos nesta cidade. Não quero ser herói, quero ser profissional. Salvar vidas não é mérito, é obrigação. Não quero nenhum agradecimento, nada que infle meu orgulho e rege a semente da soberba, eu quero é ser competente, salvar vidas com uma mão, sem que a outra saiba, e muito menos se orgulhe.

Vícios privados, virtudes públicas

O que afinal eu estava fazendo lá?

Esta é uma pergunta que sempre mereceu de minha parte respostas evasivas, mas afinal, o que me atrai ao feio,sujo, pobre e fedorento? Claro que eu poderia vir com um papo de Madre Tereza de Calcutá e dizer que estou lá apenas para ajudar e aliviar o sofrimento do mundo, mas esta conversa não convenceria nem a mim... Ou talvez eu esconda de mim mesmo uma causa secreta machadiana, um prazer sádico de ver e conhecer o sofrimento, talvez...

Isto me ocorreu em mais uma Visita Domiciliar, algo tão de rotina como simplesmente não poder fazer nada, tínhamos ido lá só para constar e para cumprir um papel burocrático e lá encontramos uma mãe pobre que ama os filhos como eles são, um irmão carinhoso como eu nunca tinha visto antes e uma família que eu não gostaria de marcá-la por simples detalhe, mas por todo um contexto e pela força de uma mulher que aguenta a vida de teimosa suportando com paciência o que não pode mudar, e com o amor a sobrecarga daqueles que só podem contar com ela.

Eu teria muito o que aprender com ela, talvez a VD tenha sido curta demais ou eu não tivesse a humildade de deixar que ela me ensinasse, mas algo me fez pensar muito naquela criança, o irmão mais novo. Sei que não é um fenômeno assim tão raro, e que está envolto em teorias que a esta altura do campeonato eu deveria conhecer de cór, mas o próprio desconhecimento de suas causas foi o que me fez pensar nas minhas.

O pequeno detalhe que me me originou as comparações foi o garoto mais novo insistir em automutilar-se, beliscava de forma repetida o ombro oposto e a coxa do mesmo lado, que já possuíam a pele calejada e diferenciada embora a mãe amarrasse um pano em seu punho para evitar este comportamento. Mas o que levava este menino a isto? Uma resposta, talvez nem tão possível e nem tão provável cujo valor pode estar restrito a este texto apenas, seja a presença da dor em si.

Eis que talvez se não for sádico, me concedo a desculpa de ser masoquista. Eis que a vida é um aprendizado, afirmação que vista de um enfoque mais prático do que filosófico nos leva a pensar na maneira como inseridos em um mundo que em muito independe de nossa vontade precisamos, a fim de justificarmos a nós mesmo a nossa presença e a necessidade de interagir com ele, sentí-lo, cada vez mais e cada vez mais intensamente.

Todo sofrimento deste mundo seria, como querem os budistas (eu não seria tão radical), criação do próprio sofredor, seja a partir de interpretações peculiares de fatos específicos da vida, seja através da busca por emoções cada vez mais intensas, entre elas, a dor. Teoria, exceções a parte, que não parece tão estranha a ninguém, ou não teria durado tanto tempo. Mas o que nos leva, então, a gerar todo este sofrimento?

Por mais contraditório que pareça, é a necessidade de me sentir vivo, seria o que me faz ir em busca do sofrimento, são as emoções que dão um sentido a nossa vida e, acreditem, a dor, por pior que seja, é muito melhor que o vazio. Em mim, talvez, uma incapacidade intrínseca à empatia, uma profunda anestesia emocional me fez aumentar, como um viciado, cada vez mais a minha dose, cada vez mais a minha necessidade de ver e sentir a dor.

Como um viciado. Quem afinal não tem vícios? E o que, afinal, melhor para a estética do nosso eternamente improvisado roteiro que expomos dos nossos personagens do que transformar estes vícios privados em virtudes públicas?