Como disse, a tarde então começou com um sentimento inexplicável de que as coisas eram, e precisavam ser, diferentes de como eu as vinha percebendo e evoluiu para uma crítica à arrogância do jovem cirurgião (como se isto não fosse redundante) ele, ora, não tinha acolhido aquela senhora, que discutia com ele, em seu sofrimento. Eu não, eu sou diferente: repito diariamente a sugestão divina de "fazer aos outros o que gostaria que fizessem a mim", o que quer que aquela senhora quisesse que fosse feito, eu faria. Não sou como eles.
Colocada a fantasia fui por as mãos na massa e ajudar o residente toda atrapalhada com uma paciente e sua família, especialmente sua família. Enquanto ela convencia um familiar a deixar a sala de trauma eu logo me prontifiquei a ajudá-la, afinal é isto que eu gostaria que fizessem por mim, não? O que se passou então talvez não merecesse mesmo uma descrição mais detalhada, mas eis que estava eu batendo boca com um indivíduo completamente desprovido de razão e eu, que deveria garantir a racionalidade da situação e a continuidade de um atendimento humanizado estava lá, em pé, perdendo o meu tempo e deixando que em mim florescesse o ódio que mandou às favas este papo de acolhimento e humanização hospitalar. Era eu que mandava ali e acabou.
Mas não era. Infelizmente alguém lembrou-se de colocar em uma tal de constituição que ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer algo que não em virtude de lei, seja lá quais forem as leis certamente não incluem determinações, por mais coerentes que possam ser, formuladas por um interno. E onde estão os residentes uma hora destas? Não sei onde está escrito, mas é de muita sabedoria uma regrinha básica que muito já me repetiram e que não se deve dar ordens cujo cumprimento não possa ser garantido. Perde-se a moral e a paciência.
A noite então veio e eu, arrasado, verifiquei que agora eu via as coisas de um modo diferente sim: sou mais igual do que eu queria admitir. Talvez a única diferença ainda seja a minha disposição para tentar ser diferente, vi que exigirá de mim mais do que disposição e que controlar-se é substancialmente mais difícil que controlar aos outros, manter o sangue frio para agir com precisão sob estresse é uma coisa, mas é algo muito, mas muito mais difícil, manter a serenidade, a empatia e a compaixão quando na verdade você quer trucidar o indivíduo. A partir do momento que você escolheu uma vida para servir, passa ser este seu único objetivo, em qualquer situação, mesmo porque não temos como saber o que cada um merece, como eles agiriam não estivessem sob tanto sofrimento.
Não sei se foi como guerreiro ou como médico que ele chegou a esta conclusão mas depois de quase 2.000 que propuseram que deveríamos "fazer aos outros o que gostaríamos que fizessem a nós" ele nos deu uma pista de como conseguir isto: devemos endurecer, mas não sem perder a ternura.