segunda-feira, fevereiro 16, 2009

  Uma tarde como muitas, mas o sentimento que eu tinha em si já me dizia que algo iria ser diferente, nem que fosse apenas a minha percepção das coisas que mudaria. Foi com este sentimento que fiquei esperando na porta do quarto dos médicos a discussão acabar, observava atentamente mas não conseguia perceber o motivo que tinha originado, tentei ajudar mas ninguém, além de mim que afinal queria passar, parecia interessado em resolver a questão.

   Como disse, a tarde então começou com um sentimento inexplicável de que as coisas eram, e precisavam ser, diferentes de como eu as vinha percebendo e evoluiu para uma crítica à arrogância do jovem cirurgião (como se isto não fosse redundante) ele, ora, não tinha acolhido aquela senhora, que discutia com ele, em seu sofrimento. Eu não, eu sou diferente: repito diariamente a sugestão divina de "fazer aos outros o que gostaria que fizessem a mim", o que quer que aquela senhora quisesse que fosse feito, eu faria. Não sou como eles.

   Colocada a fantasia fui por as mãos na massa e ajudar o residente toda atrapalhada com uma paciente e sua família, especialmente sua família. Enquanto ela convencia um familiar a deixar a sala de trauma eu logo me prontifiquei a ajudá-la, afinal é isto que eu gostaria que fizessem por mim, não? O que se passou então talvez não merecesse mesmo uma descrição mais detalhada, mas eis que estava eu batendo boca com um indivíduo completamente desprovido de razão e eu, que deveria garantir a racionalidade da situação e a continuidade de um atendimento humanizado estava lá, em pé, perdendo o meu tempo e deixando que em mim florescesse o ódio que mandou às favas este papo de acolhimento e humanização hospitalar. Era eu que mandava ali e acabou.

   Mas não era. Infelizmente alguém lembrou-se de colocar em uma tal de constituição que ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer algo que não em virtude de lei, seja lá quais forem as leis certamente não incluem determinações, por mais coerentes que possam ser, formuladas por um interno. E onde estão os residentes uma hora destas? Não sei onde está escrito, mas é de muita sabedoria uma regrinha básica que muito já me repetiram e que não se deve dar ordens cujo cumprimento não possa ser garantido. Perde-se a moral e a paciência.

   A noite então veio e eu, arrasado, verifiquei que agora eu via as coisas de um modo diferente sim: sou mais igual do que eu queria admitir. Talvez a única diferença ainda seja a minha disposição para tentar ser diferente, vi que exigirá de mim mais do que disposição e que controlar-se é substancialmente mais difícil que controlar aos outros, manter o sangue frio para agir com precisão sob estresse é uma coisa, mas é algo muito, mas muito mais difícil, manter a serenidade, a empatia e a compaixão quando na verdade você quer trucidar o indivíduo. A partir do momento que você escolheu uma vida para servir, passa ser este seu único objetivo, em qualquer situação, mesmo porque não temos como saber o que cada um merece, como eles agiriam não estivessem sob tanto sofrimento.

   Não sei se foi como guerreiro ou como médico que ele chegou a esta conclusão mas depois de quase 2.000 que propuseram que deveríamos "fazer aos outros o que gostaríamos que fizessem a nós" ele nos deu uma pista de como conseguir isto: devemos endurecer, mas não sem perder a ternura.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Deuses e semi-deuses

Obrigado Mario Sérgio... Precisava de um estímulo para voltar... Ou dois...
Um foi o seu e o outro foi a observação de que para quem nunca errou, deve ser extremamente doloroso aguentar erros dos outros, por mais insignificante que eles sejam. ou pelo menos foi o que me pareceu quando assisti, como um expectador involuntário, o show que se dava em minha frente tão logo percebi que tinha entrado na enfermaria errada, ou melhor, como eu acabara de descobrir, aquilo era um ambulatório que cada vez ficava mais parecido com um picadeiro. Mas antes que ficasse exatamente igual vi que era hora de sair, pois já havia palhaços demais.

Eu já tinha ouvido berros assim antes, em outras situações que me pareceram cabíveis e inseridos em uma didática coerente: aprender a pensar rápido, certo e sem hesitar, sob qualquer estresse, aprender a ter certeza e segurança do que se faz. Considerando que didáticas semelhantes buscam resultados semelhantes, mesmo que inconscientemente, eu me perguntei a que interessa tal treinamento a médicos?

Tudo bem, existem os emergencistas, aqueles que precisam lidar com o nervosismo dos parentes, a falta de sono, tudo mais do que se poderia supor que fosse exigido de combatente e ainda seguir o protocolo. Talvez pudessem argumentar que ninguém sabe o futuro de ninguém, o professor não pode adivinhar quem estará na tranquilidade da clínica comunitária, quem estará na ansiedade da emergência cirúrgica. Mas eu acho que existem outras explicações mais interessantes.

Uma primeira poderia dizer a respeito da construção de uma mudança realmente substancial no comportamento dos aprendizes: a dificuldade em conseguir chegar à meta determina o valor da meta, e não o contrário, assim em um processo de dissonância cognitiva vamos construindo a nossa personalidade baseada no esforço, real e aparente, e em imagens e valores que assumimos como ideais pelo simples fato de que nos parecem como o único caminho possível à meta. Ou seja, depois destes seis longos anos, estamos cada vez mais parecidos com aquilo que o status quo dominante determina que é um "médico" do que com aquilo que éramos. Para alguns talvez isto seja bom, para outros não tenho certeza.

Uma outra explicação, que não nega mas apenas complementa a primeira, seria que as pessoas buscam profissões, e formas de agir, que melhor se adequam à sua personalidade, ou seja, só uma coisa é melhor que um título de "doutor" para quem não se acha lá grandes coisas, um título de "professor doutor", um palco e um aluno...

Assim, enquanto alguns se convencem que este é o único e possível método para garantir a hierarquia (entre alunos, residentes, enfermeiros etc) e assegurar o aprendizado, outros se encaixam nele como uma luva. Claro que alguns contestam, contestam até mesmo a necessidade de uma hierarquia, mas estes não estão na academia, não formam novos médicos.

Eu disse que já vi tudo isto, mais jovem e mais tolerante. Não que isto me assuste nem me revolte, ainda prefiro a paz que o reconhecimento da razão. Mas me decepciona. Decepciona não pela didática em si, mas porque até agora ninguém disse algo que me disseram na caserna: que eu não estava lá para provar nada, mas para ser um profissional.

Só falta isto. E descer a terra junto dos mortais.
Talvez tudo torne-se até mais divertido... (mas quem precisa de diversão?)