segunda-feira, fevereiro 16, 2009

  Uma tarde como muitas, mas o sentimento que eu tinha em si já me dizia que algo iria ser diferente, nem que fosse apenas a minha percepção das coisas que mudaria. Foi com este sentimento que fiquei esperando na porta do quarto dos médicos a discussão acabar, observava atentamente mas não conseguia perceber o motivo que tinha originado, tentei ajudar mas ninguém, além de mim que afinal queria passar, parecia interessado em resolver a questão.

   Como disse, a tarde então começou com um sentimento inexplicável de que as coisas eram, e precisavam ser, diferentes de como eu as vinha percebendo e evoluiu para uma crítica à arrogância do jovem cirurgião (como se isto não fosse redundante) ele, ora, não tinha acolhido aquela senhora, que discutia com ele, em seu sofrimento. Eu não, eu sou diferente: repito diariamente a sugestão divina de "fazer aos outros o que gostaria que fizessem a mim", o que quer que aquela senhora quisesse que fosse feito, eu faria. Não sou como eles.

   Colocada a fantasia fui por as mãos na massa e ajudar o residente toda atrapalhada com uma paciente e sua família, especialmente sua família. Enquanto ela convencia um familiar a deixar a sala de trauma eu logo me prontifiquei a ajudá-la, afinal é isto que eu gostaria que fizessem por mim, não? O que se passou então talvez não merecesse mesmo uma descrição mais detalhada, mas eis que estava eu batendo boca com um indivíduo completamente desprovido de razão e eu, que deveria garantir a racionalidade da situação e a continuidade de um atendimento humanizado estava lá, em pé, perdendo o meu tempo e deixando que em mim florescesse o ódio que mandou às favas este papo de acolhimento e humanização hospitalar. Era eu que mandava ali e acabou.

   Mas não era. Infelizmente alguém lembrou-se de colocar em uma tal de constituição que ninguém seria obrigado a fazer ou deixar de fazer algo que não em virtude de lei, seja lá quais forem as leis certamente não incluem determinações, por mais coerentes que possam ser, formuladas por um interno. E onde estão os residentes uma hora destas? Não sei onde está escrito, mas é de muita sabedoria uma regrinha básica que muito já me repetiram e que não se deve dar ordens cujo cumprimento não possa ser garantido. Perde-se a moral e a paciência.

   A noite então veio e eu, arrasado, verifiquei que agora eu via as coisas de um modo diferente sim: sou mais igual do que eu queria admitir. Talvez a única diferença ainda seja a minha disposição para tentar ser diferente, vi que exigirá de mim mais do que disposição e que controlar-se é substancialmente mais difícil que controlar aos outros, manter o sangue frio para agir com precisão sob estresse é uma coisa, mas é algo muito, mas muito mais difícil, manter a serenidade, a empatia e a compaixão quando na verdade você quer trucidar o indivíduo. A partir do momento que você escolheu uma vida para servir, passa ser este seu único objetivo, em qualquer situação, mesmo porque não temos como saber o que cada um merece, como eles agiriam não estivessem sob tanto sofrimento.

   Não sei se foi como guerreiro ou como médico que ele chegou a esta conclusão mas depois de quase 2.000 que propuseram que deveríamos "fazer aos outros o que gostaríamos que fizessem a nós" ele nos deu uma pista de como conseguir isto: devemos endurecer, mas não sem perder a ternura.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Deuses e semi-deuses

Obrigado Mario Sérgio... Precisava de um estímulo para voltar... Ou dois...
Um foi o seu e o outro foi a observação de que para quem nunca errou, deve ser extremamente doloroso aguentar erros dos outros, por mais insignificante que eles sejam. ou pelo menos foi o que me pareceu quando assisti, como um expectador involuntário, o show que se dava em minha frente tão logo percebi que tinha entrado na enfermaria errada, ou melhor, como eu acabara de descobrir, aquilo era um ambulatório que cada vez ficava mais parecido com um picadeiro. Mas antes que ficasse exatamente igual vi que era hora de sair, pois já havia palhaços demais.

Eu já tinha ouvido berros assim antes, em outras situações que me pareceram cabíveis e inseridos em uma didática coerente: aprender a pensar rápido, certo e sem hesitar, sob qualquer estresse, aprender a ter certeza e segurança do que se faz. Considerando que didáticas semelhantes buscam resultados semelhantes, mesmo que inconscientemente, eu me perguntei a que interessa tal treinamento a médicos?

Tudo bem, existem os emergencistas, aqueles que precisam lidar com o nervosismo dos parentes, a falta de sono, tudo mais do que se poderia supor que fosse exigido de combatente e ainda seguir o protocolo. Talvez pudessem argumentar que ninguém sabe o futuro de ninguém, o professor não pode adivinhar quem estará na tranquilidade da clínica comunitária, quem estará na ansiedade da emergência cirúrgica. Mas eu acho que existem outras explicações mais interessantes.

Uma primeira poderia dizer a respeito da construção de uma mudança realmente substancial no comportamento dos aprendizes: a dificuldade em conseguir chegar à meta determina o valor da meta, e não o contrário, assim em um processo de dissonância cognitiva vamos construindo a nossa personalidade baseada no esforço, real e aparente, e em imagens e valores que assumimos como ideais pelo simples fato de que nos parecem como o único caminho possível à meta. Ou seja, depois destes seis longos anos, estamos cada vez mais parecidos com aquilo que o status quo dominante determina que é um "médico" do que com aquilo que éramos. Para alguns talvez isto seja bom, para outros não tenho certeza.

Uma outra explicação, que não nega mas apenas complementa a primeira, seria que as pessoas buscam profissões, e formas de agir, que melhor se adequam à sua personalidade, ou seja, só uma coisa é melhor que um título de "doutor" para quem não se acha lá grandes coisas, um título de "professor doutor", um palco e um aluno...

Assim, enquanto alguns se convencem que este é o único e possível método para garantir a hierarquia (entre alunos, residentes, enfermeiros etc) e assegurar o aprendizado, outros se encaixam nele como uma luva. Claro que alguns contestam, contestam até mesmo a necessidade de uma hierarquia, mas estes não estão na academia, não formam novos médicos.

Eu disse que já vi tudo isto, mais jovem e mais tolerante. Não que isto me assuste nem me revolte, ainda prefiro a paz que o reconhecimento da razão. Mas me decepciona. Decepciona não pela didática em si, mas porque até agora ninguém disse algo que me disseram na caserna: que eu não estava lá para provar nada, mas para ser um profissional.

Só falta isto. E descer a terra junto dos mortais.
Talvez tudo torne-se até mais divertido... (mas quem precisa de diversão?)

segunda-feira, setembro 15, 2008

Vazio por dentro

Chegou mais um PIMBA, foi o que disseram na sala dos médicos enquanto eu terminava, ainda meio sonolento, o meu sanduíche. Não bastasse o apelido nada carinhoso de Pobre, Imundo, Mulambo, Bêbado (e Atropelado que neste caso não se encaixava) que já lhe pôs longe de possibilidade de defesa ou mesmo justificativa, ainda foram capazes de comentar, às gargalhadas, “só que este é mais engraçado, fica fazendo umas caretas estranhas”, soterrando com máximo do desrespeito ao pouco de humano que ele ainda conseguia lutar para manter sob todo o fuzilamento moral que a nossa arrogância e soberba lhe impunha.
Quando cheguei perto para ver, o tal palhaço de quem todos riam, me deu vontade de gritar com ódio: “vocês não imaginam como isto deve doer?”, mas mas uma vez me calei, nunca consigo saber se é porque não sou forte o suficiente para enfrentar o grupo, o meu grupo, ou se eu sei que não faria nenhuma diferença. Ou mesmo porque eu também não consigo sequer imaginar como isto deve doer.
Acuado como um animal selvagem apanhado por caçadores estava ele amarrado em seu leito se debatendo. Enquanto as meninas fugiram com medo de sua violência eu me aproximei, nenhum grande ato de coragem, pois ele estava amarrado, apenas não tive nojo da situação. Quando cheguei bem perto dele, lhe olhei nos olhos e perguntei o que estava acontecendo e eis que o monstro tão assustador disse com uma voz carregada de sofrimento: “Por favor...”, Suavemente lhe perguntei o que queria, no que ele então como de imediato parou de se debater e se acalmou dizendo: “Por favor tire isto de minha cabeça...”
“Não vejo nada em sua cabeça”
“Estes pensamentos”
“Como eles foram parar aí?”
“São meus, mas não consigo controlá-los, eles vêm forte, cada vez mais forte... Por favor! Me dê qualquer coisa que me alivie... Qualquer coisa para dormir... Por favor... Qualquer coisa!”
Foi quando conseguimos pegar um acesso venoso e ministramos uma dose alta de benzodiazepínicos para que se acalmasse, quando todos foram dormir, exceto por mim que, apesar da ironia dos colegas insisti em ficar lá conversando com ele, se foi por humanidade ou curiosidade científica eu não sei, e talvez a ele nem importasse e, além do mais, as repostas a esta dúvida variam com minha auto-estima.
A ação dos benzodiazepínicos no comportamento é extremamente interessante pois leva o paciente (ou eventualmente uma vítima do “boa-noite Cinderela”) a um estágio que os que consideram a consciência profundamente relacionada à capacidade de reter memória implícita chamam de “inconsciente” onde todos os tipos de inibição são eliminados e o paciente fica sujeito a uma condição que fez estas drogas serem apelidadas de “soro da verdade” e sem a capacidade de lembrar-se de absolutamente nada do que ocorreu nos poucos minutes que se seguem à administração da dose.
Pensando nisto decidi aproveitar o momento para uma anamnese completa, era a minha chance de entender um pouco mais sobre o que estava acontecendo, apenas para aprender medicina, pois a minha opinião pouco valeria uma vez que o paciente já seria encaminhado à psiquiatria e não cabia a nós diagnosticar, nem mesmo emitir opiniões. Quanto ao dilema ético que citei, talvez eu pudesse justificar que aprendendo medicina eu poderia aliviar melhor os pacientes que encontrar depois de formado.
Mas voltando ao nosso paciente, quando eu já me encontrava sentado a uma cadeira na beira de seu leito ele me disse que tinha Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e para isto tomava 60mg de metilfenidato, uma dose um tanto quanto alta para um diagnóstico que para mim parecia um tanto quanto errado. Claro que mesmo que eu estivesse certo, e o psiquiatra dele errado, não cabia aqui discutir sua competência pois eu o diagnosticava no calor da sala de emergência e ele no aconchego de seu ambulatório, cabia sim discutir a falta de diálogo entre estes dois polos da medicina.
Para me explicar melhor os pensamentos: sabia que eram dele e que foi ele mesmo que os pôs em sua mente, mas a presença deles o incomodava tanto que precisava fazer algo para esquecê-los: beber, drogar-se, bater-se ou provocar situações que lhe causassem um sofrimento maior do que aqueles pensamentos, quando então ele teria um alívio temporário para eles. E era justamente o que não deixava ele prestar atenção em mais nada.
E o papel do metilfenidato nisto? Simplesmente fazia o que todo estimulante faz, alivia a queixa de desatenção servindo de doping intelectual, mas por outro lado aumentava a sua angústia e ansiedade o que culminou neste coquetel mortífero: metilfenidato, cocaína e álcool. Precisa de mais alguma coisa? Agora é só esperar ele dormir que não se lembrará de nada amanhã e eu aproveitei para continuar a anamnese perguntando-lhe o conteúdo dos pensamentos.
Nada mais desagradável possível: era sempre lembranças de coisa que tinha feito errado ou que podia ainda fazer errado então, buscando uma solução psicanalítica para o caso comecei a perguntar sobre sua infância e família. Seus pais tiveram uma rápida ascensão financeira porém às custas de excesso de trabalho e pouca atenção aos filhos o resumo disto foi que eles só lhe davam atenção quando fazia algo errado e sempre para brigar com ele, esta era a única fonte de atenção que tinha dos pais. Assim “fazer algo errado” tornou-se para ele uma fonte paradoxal de prazer: ao mesmo tempo que obtinha atenção dos pais era insuportável que esta atenção fosse desperdiçada com brigas ao invés de harmonia.
Na contramão das neurotendências serotominérgicas eu acabei de encontrar a peça psicanalítica do Transtorno Obsessivo Compulsivo: o conflito primitivo entre o desejo e a castração, sem, claro, esquecer o componente comportamental: tão logo começaram a aparecer as obsessões, juntaram-se a elas as compulsões em uma tentativa desesperada de aliviá-las e à realização de rituais compulsivos retroalimentou positivamente.
Tentei explicar a minha teoria enquanto ele me olhava com um certo olhar vago balançando a cabeça como se entendendo tudo, neste momento me senti um tanto quanto ridículo: eu, um interno sem grandes pretensões acadêmicas e ele bêbedo, drogado e sob efeito de benzodiazepínicos, nada melhor do que uma oportunidade de errar, pensei eu.
Ele então me disse que agora adulto o conflito parecia cada vez pior, seus pais, agora aposentados buscavam a reaproximação e ele resistia como pois a simples visão dos pais lembrava a ele que não pode recuperar o que nunca teve e sobre isto, mais culpa ainda pois agora a responsabilidade de atrapalhar a união era dele, pessoal e intransferível.
Pensei em minha vida enquanto ele me falava da dele, tentei reencadear as minhas lembranças e achar a fonte dos meus traumas e dificuldades e vi o quanto é estranho a nossa memória, talvez por falta de espaço nós não guardamos as memórias de forma contínua, mas pequenos saltos de imagens estanques: somos crianças em um momento e logo depois como em um passe de mágica nos tornamos adolescentes e parece que todo o resto foi ontem, enquanto rebobinava a minha fita fui vendo enquanto estranha é nossa evolução psicológica: o tempo vai passando as fases vão se sucedendo sem que tenhamos uma única oportunidade de reconsiderar e compreender o que está acontecendo, isto faz algo de perigoso: deixa o nosso corpo exclusivamente na mão de comportamentos condicionados, eis que é um mistério que “apenas” 20% da humanidade seja obsessiva-compulsiva.
Contei-lhe a minha teoria e o animei a buscar pela curo, possível e bem mais agradável do que estimulantes, aí ele me perguntou se parar o metilfenidato diminuiria a sua performance no trabalho e eu perguntei a ele quanto valia a sua paz interior, estaria ele disposto a sacrificá-la pela performance? Aparentemente sim, estranho este mundo tão competitivo o que para mim é tão óbvio outros sacrificam sem pestanejar, conforme discutíamos fui mostrando a ele que muita coisa do que fazia era na realidade reflexo de seu transtorno, quando me veio a pergunta pela qual agradeço até hoje a amnésia benzodiazepínica: se eu me livrar das minhas obsessões o que sobrará em mim?

sábado, agosto 23, 2008

Em busca da felicidade

Ele me disse que queria ser feliz. Rasgou-me o fundo da alma escutar isto. Pobre e doente: fraco e aprisionado em leito, embora tão jovem, fez-me envergonhar de cada "problema" meu, ou cada vez que sofri e chorei. Tão grande o meu sofrimento que ele mesmo me consolou: o que precisamos para ser feliz?, perguntou, já mesmo respondendo: fazer o quisermos. Basta então não querermos muito, disse com um sorriso.

Eu sempre tão arrogantemente filosofo tinha que estragar tudio dizendo que os orientais diziam algo parecido com isto há alguns milhares de anos atrás, mas afinal quem está interessado em orientalidades? Mas perto de nós, na Grécia, havia um sujeito que tinha dado outra opinião, disse a ele que ao ouvir a palavra Grécia começou a se interessar... Pois eis que Epicuro já tinha sugerido, assim como ele, que a força da felicidade está mais dentro do que for a de nós.

O tal grego, então, supôs que nós procuramos sempre a felicidade no lugar que ela não está, usando uma concepção sugerida alguns séculos depois por Schopenhauer de o mundo como vontade e representação, representamos vontades como desejos que pouco significam ao serem realizados, pois a vontade que os originou ficou mantida intacta, portanto não somos felizes se apenas realizarmos nossos desejos, seremos se descobrirmos a fundo quais são nossas vontades e concentrarmos-nos nelas. Assim Epicuro reduziu as necessidades básicas da felicidade como três: ter amigos por perto, ser (intelectualmente) livre e analisar-se.

Rindo ele me perguntou porque um médico leria filósofos gregos antigos, em uma época onde a medicina é tão dominada por máquinas e computadores. Disse a ele que era para ter assunto para conversar, assim como estava fazendo com ele: era o preço que eu pagava por tudo que os pacientes me davam, a forma que encontrei de agradecê-los.

Mas a ciência moderna, que tanto faz e tantos espetáculos produz, não tinha inventado ainda uma fórmula da felicidade porque? Sorrindo disse a ele que a sua pergunta me lembrou David que na Bíblia quando Deus lhe ofereceu o que quisesse ele nada pediu que não a sabedoria com a qual todo o resto ele poderia conseguir por mérito próprio. Não lhe disse e não sei se ele entendeu, mas aquele garoto não queria da ciência a cura de sua doença, mas a felicidade. Diante de tal simplicidade o que poderíamos querer de diferente?

Disse a ele que embora tivessem inventado drogas extremamente potentes contra dor, angústia, ansiedade e depressão, livrar-se de todos estes males não garantia a ninguém a felicidade, que é conseguida com enorme esforço, basicamente procurando-a nos lugares certos.

Há sim, um grupo de pessoas que diz fazer trabalhos científicos sobre a questão da felicidade e cujas conclusões auxilia muitos a encontrá-la, é a tal da "Psicologia Positiva". É um exercício interessante interpôr-la com as idéias de Epicuro, veja só, disse a ele, a Psicologia Positiva considera que existem seis virtudes e cada uma é constituída de algumas “forças pessoais”, a saber:

A primeira virtude é “saber e conhecimento” que é constituída pelas forças pessoais de “curiosidade e interesse pelo mundo”, “criatividade e originalidade”, “julgamento e pensamento crítico”, “perspectiva e sabedoria” que corresponde a uma visão global, distanciada e madura acerca dos fatos, mundo e pessoas e o “amor pelo conhecimento”. Esta virtude está de certa forma ligada tanto à auto-análise de Epicuro quanto à liberdade, pois só quem se sente livre o é para expandir seus conhecimentos, assim como aquele que realmente os busca de coração está sempre questionando-o e às suas certezas, assim como a si próprio no processo de auto-análise.

Mas questionar-se não é angustiante, não seria melhor ter só certezas? Realmente, tive que concordar, quem não se questiona, não tem dúvidas e pode ser extremamente feliz assim cercado de um mundo artificialmente perfeito, mas, perguntei eu, o que ocorre quando o mundo foge à regra que decidimos escolher, e o mais importante, como podemos prever o futuro se nos negamos a oportunidade de conhecer todas as variáveis? Disse eu que assim como é nossa escolha a satisfação das vontades, e não dos desejos, para a busca da real felicidade, é nossa escolha ter em cada dúvida, em cada descoberta o prazer de aprender por aprender e entender o mundo para usá-lo e prevê-lo.

Outra virtude é a “coragem”, diretamente ligada à noção de liberdade proposta pelo grego, uma vez que para assumir a liberdade é preciso coragem, pois só é verdadeiramente livre aquele que transcende a moral da sociedade e as imposições do senso comum, conforme observou Nietzsche com a noção do além-homem. Neste contexto a "coragem" ultrapassa as forças pessoais de “bravura e valentia” e revela-se também através da “diligência e perseverança”, da “integridade, honestidade e autenticidade”, do entusiasmo e da energia.

Coragem eu não tenho muita, aqui é sinistro, ontem a noite morreu o terceiro desde que eu cheguei: naquela cama ali em frente... Dei um sorriso que venceu a cara de medo dele para explicar que é importante perceber que a coragem deve-ser vista como todas as manifestações de individualidade e cada ato de sobrevivência, ou seja, diante do destino forte e inevitável não seria meia dúzia de lágrimas (d)e medo que iriam desmerecer todo o conjunto do que aquele garoto sofreu, ele era, com certeza, um belo exemplo de coragem se visto no conjunto da obra: mesmo diante do pior pesadelo que um homem poderia ter ele ainda busca sua individualidade e demonstra que o pouco que ainda tem de vida vale a pena ser vivido.

A virtude de “amor e humanidade” possui óbvias semelhanças com a idéia de que necessitamos de fortes laços de amizade para sermos felizes, tal virtude pode ser construída pela utilização das forças de “amar e aceitar ser amado” que busca valorizar os relacionamentos íntimos, nutrir sentimentos profundos e duradouros e ser capaz de recebê-lo prazerosamente das outras pessoas, assim a doença pode ser transformada em uma oportunidade para a valorização das relações interpessoais, o senso de pertencimento, reatando velhos laços e aproximando as pessoas em torno de uma atmosfera de união com o auxílio também da força de “bondade e generosidade”. A construção da força de “inteligência social e emocional” é feita a partir do conhecimento de si e dos outros, empatia e sociabilidade, capacidade para perceber o estado de espírito e o temperamento alheio usando estas informações para modelar o próprio comportamento.

Para aqueles que duvidam que isto pode ser construído em um leito de hospital, bastava ver tal menino e como ele se relaciona com a população de lá: a cada um que chega porta-se como velhos amigos, não apenas parceiro de brincadeiras, mas como uma pessoa que realmente se importa e demonstra através de um contato humano que ninguém está sozinho, tornam-se mais que vizinhos, mas companheiros de luta e sofrimento.

A quarta virtude é a justiça que é composta por “cidadania, trabalho em equipe e lealdade”, condições fundamentais para a manutenção do ambiente de amizade proposto por Epicuro e que poderia ser desenvolvida pelo doente através do envolvimento dele em grupos terapêuticos, inclusive estimulando-o a levar paz e tranqüilidade a outros doentes (que serve também como a mais potente força de reafirmação positiva do otimismo no próprio paciente). Deve ser estimulada também a imparcialidade, a liderança, a justiça e a eqüidade.

A quinta virtude é a temperança, composta pela “disciplina e autocontrole” que é construída apartir da (auto)análise minuciosa de cada emoção destrinchando-a aos seus mínimos componentes e recompreendendo-a de forma a a valorizar o presente reavaliar o presente ressaltando e recompreendendo os momentos a partir da reavaliação consciente das emoções e do humor do paciente com foco de prevalescer as características de satisfação, contentamento, realização, orgulho, gratidão e perdão. Mas a temperança não é só isto também é “prudência e cautela”, que consiste especialmente em esperar que todas as informações se completem antes de agir, “humildade e modéstia”, mas não excessivamente, e a “capacidade de perdoar”, fundamental nesta fase da vida.

A última virtude é a transcendência que consiste na “apreciação da beleza e da excelência”, na “gratidão”, na “esperança e otimismo”, no “humor e alegria” em a “espiritualidade e religiosidade” que consiste em ter crenças sólidas e coerentes a respeito do propósito maior e do significado do universo, que forneçam uma fonte de conforto e uma filosofia de vida articulada que o situe em um quadro maior de transcendência.

Depois de tudo

Quando fui passar a visita encontrei ele chorando no leito, meio que ainda inseguro e sem saber exatamente o que fazer, me sentei ao seu lado na cama e coloquei minha mão por sobre os seus ombros, seus olhos que antes fitavam a janela agora vagavam pelo chão como que em busca de alguma solução que eventualmente alguém haveria deixado cair, assim como os meus que buscavam por toda enfermaria alguma palavra, qualquer coisa, que eu pudesse dizer que não fosse as idiotices de sempre.

"Passei a minha vida inteira tentando ser forte", disse ele, "às vezes parecia que eu tinha conseguido, mas eu nunca fui. Tenho medo." Qual seria o meu papel agora? Afora todo o esforço da equipe médica em evitar a progressão da doença e buscar estratégias as mais curativas possível a melhor coisa que eu poderia fazer neste momento seria transformar este caminho o mais suave possível à aceitação fazendo que disto surgisse algum tipo de esperança, religiosa ou metafísica, qualquer coisa, enfim.

A questão era que para ele agora o problema não é a sua relação com a morte, mas a presença do fantasma da morte em si, ou seja, seria então totalmente inútil que eu desse conselhos sobre como mudar, se eu não mostrasse a ele antes que enquanto a morte é inevitável, os nossos sentimentos enquanto ainda vivos é que ainda podem ser de certa forma controlados.

Enquanto eu devaneava por conceitos básicos de tanatologia que pudessem (pelo amor de Deus!) me dar uma luz sobre como agir agora, ele voltou a olhar a janela e me mostrou os urubus: “Porque andam sempre em círculos? Como prisioneiros tomando banho de sol no pátio, sempre em círculos, todos na mesma direção...”. “Mas eles são livres...”, retruquei eu, meio sem saber porque eu disse isto, que naquele momento me pareceu a coisa mais idiota possível, depois de tanto pensar. “Ao contrário de mim, preso aqui nesta cama.” Então eu perguntei se ele sentia inveja dos urubus ao que me respondeu com um “sim” melancólico com a cabeça baixa e o olhar vago quando perguntei: “Inveja de que? De ser urubu?”. Não, de ser livre. “Livre para ser urubu?”, insisti eu, que finalmente consegui um sorriso.

“O que pode o urubu que você não pode?”, “sair daqui, desta cama”, foi a resposta imediata. Era a deixa que eu precisava, então bastava ser o mais enfático possível para afirmar que os urubus não voam por prazer, voam para conseguir comida para continuar voando em busca da incerta subsistência diária, não, eles não são mais livres que você, ao contrário: estão condenados eternamente a uma prisão: a prisão de ser urubu. Não podem jamais mais do que sua condição de urubu lhes permitem, passam portanto ao largo de todos os benefícios e prazeres que a humanidade criou e são obrigados a um único objetivo: conseguir comida de forma desesperadamente ansiosa em um mundo cada vez mais modificado.

Ele não, possuía sua subsistência e segurança garantida e poderia se dedicar a inovação criativa muito além do que qualquer urubu pudesse jamais sonhar. Entretanto, a liberdade nunca é total assim como nunca é totalmente restringida: seja na cadeia ou em um leito de enfermaria, quaisquer que sejam as contingências, você será sempre livre para escolher uma entre infinitas possibilidades para cada ato seu e sem a necessidade de luta pelas coisas básicas então a mente poderia ganhar a amplidão do espaço criativo. Mas algumas vezes não ganha pois a dor de supor-se proibido de seja lá o que for cala o grito do novo e reduz o homem a meros repetidores de fatos e ações, aí sim, como os prisioneiros girando no pátio sempre na mesma direção.

Mostrar ao doente que existe uma criatividade possível para além da dolorosa restrição ao “poder fazer” e da paralisante suposição teórica de que a “vontade de poder”, verdadeira força vital de cada um, estaria silenciada pelo aprisionamento dos lugares onde o corpo poderia ir ou as responsabilidades que poderia assumir é realmente uma arte curativa em qualquer situação e quaisquer que sejam as contingências enfrentadas: seja a imobilidade da paralisia ou caquexia, seja as grades de uma prisão ou mesmo uma lesão neuronal.

Poder redirecionar esta vontade para outros “poder fazer”es é dar nova vida ao corpo: enquanto que a morte não é escolha, sofrer por ela é. E aproveitar o tempo que lhe resta da melhor, e mais criativa forma possível também é. O prisioneiro que só pensa em sua “liberdade” perdida, que se esquece das responsabilidades decorrentes dela, assim como o doente que sonha com uma cura milagrosa que lhe devolva a juventude e saúde que a muito já se foram, só encontrarão dor e sofrimento pelo caminho, enquanto que todo aquele que se dispuser a aproveitar o possível, a cada momento este sim, encontrará a felicidade. Diga-se de passagem que todos morreremos um dia, daí, portanto, a frase anterior vale para qualquer um.




terça-feira, agosto 12, 2008

O dia que não existiu

Talvez não fosse a hora de perguntar o que houve, na realidade eu já sabia a resposta: ele não lembra. Perguntei então o que havia levado ele a tentar o suicídio e a resposta surpreendeu: foi sentir-se preso, sozinho, no escuro, drogado. A cela era escura, com apenas algumas fatias de luz passando pelas grades no alto da porta, um cheiro intolerável de suor e sujeira e um banco onde não se podia nem sentar, quanto mais deitar, devido a barra de ferro onde prendiam as algemas. E estar lá sem saber exatamente porque, por causa de um ato que não foi ele quem cometeu. Seu corpo talvez, mas não a sua mente. Três dias, que nem foram tão longos quanto podia parecer...

A surpresa da resposta veio porque não foi isto que eu perguntei, eu queria saber antes: o que fez com que ele se matasse ingerindo aquela dose absurda de medicamentos e álcool? Não tinha sido suicídio, apenas queria um tempo, descansar, esquecer, ou seja, sumir: morrer. Revisando tudo que aconteceu ele compreendeu, aparentemente pela primeira vez, o quanto estava sofrendo antes de procurar ajuda médica.

Milhares de projetos simultâneos, reuniões, compromissos, tarefas, todos com data limite estourando. Brigava com todos, todos eram imbecis e arrogantes, ele não, sempre a vítima, perseguido por estar sempre certo. Não conseguia se concentrar em nada: havia sempre algo importante e inadiável esperando, além do mais “filmes” de suas falhas repetiam incessantemente. É ele tinha falhas, e muitas. Não tolerava as falhas dele, se elas o torturam tanto, porque iria perdoar a de outros?

Não tinha sido suicídio então, mas o que fez uma pessoa que já havia passado por isto antes, com uma gama tão grande de opções de drogas, escolher justo uma que lhe tira a memória? Como alguém que pensou cuidadosamente em como daria cada passo, alguém que fez tanto esforço para conseguir a medicação, simplesmente não pensasse em como a medicação iria agir, e quais conseqüências isto poderia ter.

É certo que algo dentro dele sabia exatamente o que iria acontecer tão logo tudo aquilo começasse a fazer efeito e é certo também que era justamente isto que este algo estava procurando, agora só restava a nós descobrir quem, ou o que, era este algo e até que ponto isto seria diferente, ou igual, a quem ele realmente era ou poderia ainda ser.

Ao que tudo indica poderíamos assumir este caso como o suprassumo do behaviorismo, visto que este homem avive diariamente uma angustiante luta contra pensamentos que, embora percebesse como próprios de si mesmo, são tão violentos e autodestrutivos como intoleráveis, e alguma explicação deve existir para a existência dos diversos rituais criados que ele vive repetindo que embora tenham esta finalidade são inúteis para aliviar tal dor. Mas não serie este o caso aqui, mas sim propor um convite ao existencialismo.

A idéia básica é que a existência precede a essência e, portanto, não devemos, buscar uma explicação a uma natureza humana dada e imutável, como faz o behaviorismo radical, mas o existencialismo radicaliza em uma outra direção, pressupõe a ausência total de determinismo: o homem é condenado a ser livre. Condenado porque não criou a si próprio e uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo aquilo que fizer.

Esta noção é fundamental para a compreensão dos mecanismos que regulam a nossa vida em sociedade: já nascemos condenados, e não adianta clamar por justiça ou a pressuposição da inocência ante a dúvida, sequer houve julgamento. Mas o nascimento, este momento exato, embora já lhe pese o fardo, ainda não será suficiente para definir o homem em sua essência pois marca-lhe primeiro a existência: o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define. O homem primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. O homem é , não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz.

Como que contradizendo o que eu a pouco disse a pesada mão da condenação imposta ao homem pela liberdade assume a forma das contingências que cercam o homem, indiferenciando ele próprio “daquilo” que, como em nossa paciente, tomou as atitudes que agora “ele próprio” esta condenado à perda da “liberdade” pela justiça não metafísica dos homens. Eis que ele, ao ser definido como aquilo que faz, é definido como a sua resposta frente as contingências que moldam seu comportamento, sejam as contingências externas a ele (o mundo, a sociedade) ou seja as internas (doença mental, disfunções), mas para aqueles que definem o homem pelo seus atos (todos, inclusive ele mesmo), isto não faz diferença. Não é portanto nossa culpa agir assim, talvez nem tenhamos tanta liberdade, afinal, mas esta é parte da condenação que nos impuseram quando nascemos: havia sim, bem no início de nossa existência, uma enorme semente de essência a qual devemos domá-la e compreendê-la pois responderemos por ela, mesmo que ela não seja parte do que definimos como “nós”.

Mas o que então somos (aquilo que definimos) como “nós”? Se somos o resultado de nossos atos, personagens cuja essência é construída pelas nossas ações ao longo da vida, qual impacto ações tão dramática como estas teriam em nossa vida? Conforme vimos é de muito pouca ajuda, e nenhum efeito prático, a noção de que existe algo em nós que não participe de nós mesmo, porém não vai ser um ato que fizemos, do qual não nos lembramos que vai definir por toda uma vida.

Como desastres que quase sempre são confundidos com os fatos atípicos que os revelam, sejam as chuvas de verão que revelam a ocupação desordenada do espaço levando a culpa que deveria ser dos permitiram tal desordem, assim é também com as pessoas: uma arma em sua mão, que não era dele e nem sequer foi utilizada leva a culpa por todos os fatos que o levaram a estar lá e que propiciaram o surgimento dela, ou como diria o escritor francês, o covarde se faz covarde e o herói se faz herói, existe sempre uma possibilidade do covarde deixar de sê-lo, assim como o herói também, o que conta, na realidade, é o compromisso total e não um caso particular.

domingo, junho 22, 2008

A questão no CTI

(Tradução minha)
O que será mais nobre para a alma: aguentar os ataques do destino ou lançar-se sobre seu tempestuoso mar dando-lhe fim, ao tentar resistir? Morrer é apenas dormir, dormir um sono que acaba com as dores do coração e os golpes que vêm da própria carne, esta é a solução que se deseja: morrer, dormir. Dormir e, quem sabe, sonhar. Eis aí todo o problema: que sonhos virão tão logo nos livrarmos das amarras que aqui nos prende? Pois é isto que nos faz parar, é este respeito que torna uma calamidade uma vida assim tão longa.
Quem afinal aguentaria os golpes e o desprezos do mundo, como se a paciência fosse um mérito que simplesmente não valesse a pena quando tudo poderia ser resolvido com uma faca desembainhada. Quem aguentaria tudo isto? Doando seu suor e sangue para suportar uma vida tão cansativa se não fosse pelo medo do que poderia haver depois dela, um país de onde ainda nenhum viajante voltou, terra que desafia a vontade de viajar dos males que conhecemos para aqueles que sequer imaginamos. Esta é a consciência que nos transforma nos covardes, transformando a força selvagem da resolução na pálida máscara dos pensamentos.

Talvez isto explique o que estou fazendo aqui agora.
Ou o que eles estão fazendo em minha frente.
Afinal qual a diferença entre nós?
Ao contrário deles, eu posso tirar minha própria vida, eles dependem de mim para isto.
Mas fora isto, nada do que a superioridade aparentemente tão óbvia, tem afinal, algum valor.
Viver, morrer.
As amarras que nos prendem são as mesmas, a covardia que nos angustia também.
Posso sair daqui andando, fingindo que isto não passou pela minha cabeça, fingindo que nunca estarei aqui, fingindo que quando estiver terei esperança.
Esperança de que?
De voltar tudo como era antes?
E que valor tem isto?
Não seria melhor poupar me de tudo isto, com uma faca de desembainhada?
O que me prende aqui, afinal?

domingo, junho 15, 2008

Herói

Eu o percebi quando ele se levantou, aquele homem enorme iria achatar a pobre mulher, preocupação que ninguém parecia ter, não obstante o trabalho que iria dar caso isto ocorresse. O gigante mal conseguia andar, as pernas, que um dia já devem ter se orgulhado de sua força, não sustentavam mais todo resto, mãos grossas, outrora tão poderosas, já não prestavam nem para apoio ou equilíbrio, de tudo, só lhe restava o amor da esposa.

No caminho do banheiro ele me disse quão ruim era ficar doente, especialmente quando a causa era desconhecida, mais preocupado com meu aprendizado do que com o sofrimento daquele homem, decidi examiná-lo. A história, que de inicio me pareceu fascinante, para ele certamente era dramática e, em segundos, encaixei seu florido quadro de sinais e sintomas em uma elaborada teoria de manifestações para-neoplásicas e como que se descortinassem a meus olhos uma velha história mal-contada logo percebi uma massa paupável no quadrante superior esquerdo do abdome e um linfonodo como o da velha freira, irmã Maria José.

Insisti com a equipe que deveríamos melhor avaliar o paciente, exigi uma ultrassonografia abdominal, bioquímica e hematologia. Ninguém parecia dar tanto valor ao doente como eu e, naquele momento me senti importantíssimo a ele, perigosamente importante, talvez, nunca iria imaginar que o perigo seria para mim, e não para ele, se o câncer o corroía, ele, afinal, estava no melhor lugar onde poderia estar, assim como eu, também estava no melhor lugar onde poderia deixar-me corroer pelo pecado que supostamente seria o preferido do diabo: a vaidade. Sentir-se importante para alguém e julgar ter feito uma descoberta "fundamental" é algo que desafia a nossa humildade e destrói a nossa capacidade de ver o mundo como ele é e nos cega com imagens de como gostaríamos que ele fosse.

Pois que a bioquímica revelou-se surpreendente e a hemato algo bem longe do para-neoplásico. O quadro, embora urgente, não era necessariamente crônico e, desafiado a provar os sinais que eu tinha visto, provei a mim mesmo incapaz de um exame físico confiável, na frente de uma pequena junta e de meus pares, o meu linfonodo era uma hérnia umbilical e não havia massa, mas apenas uma tensão em um paciente que fora examinado sentado. Não há exceções para o certo, disse, sem esconder um ar de reprovação, o professor.

Poucas vezes o caminho de casa me pareceu tão longo. Estava me acostumando a vitórias o que transformou a pesada lição em uma multifacetada conjunção de ensinamentos, quisera eu ter a sabedoria de aproveitá-los e nunca mais esquecer. Uma noite em claro e pesadelos de assassinato: teria eu, se pudesse, enviado aquele homem a quimioterapia?

Tudo bem... Não serei tão dramático, afinal nenhuma atitude seria tomada sem que antes eu solicitasse um parecer de um oncologística, mas quantas alucinações semióticas e delírios diagnósticos eu ainda sofrerei, o quanto eu preciso para ver somente a luz que entra nos meus olhos, escutar apenas o que é me dito? O que eu ainda preciso fazer para ter este dom, sua falta, certamente é bem pior do que uma incapacidade médica, para compensar isto, basta estudar, mas como compensar a esquizofrenia clínica.

Eu tinha dito a ele que o visitaria no dia seguinte. Não fui. Envergonhado de minha atitude, preferi esquecer, mas a culpa por ter abandonado sem esquecê-lo foi como vinagre sobre sobre a ferida ainda mal curada. No corredor da emergência, encontrei sua esposa, embora tenha tentado ignorar-la, ela me reconheceu e vei me falar.

Assumi minhas fraquezas e confessei minhas vergonhas, disse-lhe que preferia e que muito tinha desejado ver o marido dela com um triste diagnóstico de câncer, pois isto apaziguaria dor de minha alma, não me importando agora o sofrimento que ele mesmo pudesse ter. "Para nós você ainda é nosso herói", disse ela, "não fosse sua insistência em um diagnóstico de câncer, ele não estaria vivo agora".

Herói. Será que todos os heróis são estes covardes e inconseqüentes que eu fui? Será que tudo nos livros de história resume-se em coincidência e hipocrisia? Não quero que o elogia reacenda a chama da vaidade que estou e esforçando para apagar, nem quero nem imaginar o que teria acontecido caso a minha hipótese diagnóstica tivesse sido menos "espetaculosa" e, conseqüentemente, interessante.

Mas o que importa é que eu agora era um herói. Me lembrei do filme homônimo, cuja cena final muito me impressionou: o herói sendo alvejado por milhares de flechas, ele que poderia ter cumprido seu papel e saido ileso, preferiu ser morto, pois esta era a função do Estado que ele decidiu preservar com todas as injustiças inerentes, qualquer outra opção, pensou ele, seria pior, como narrou a voz de fundo: “morto como traidor, enterrado como herói”

Me sentiu igual, posso preferir o orgulho de ser herói, mas prefiro me concentrar nas setas que me apontam à realidade: falhei e falhei feio. Posso me enganar quanto a diagnósticos, posso errar quanto a fisiopatologia, mas jamais deveria ver outra coisa que não a luz que chega a meus olhos, jamais deveria deixar que interpretações modifiquem percepções, fatos deveriam ter mais peso que explicações. Que as flechas matem este louco.

Afinal que vaidade me levaria a importar-me com tão insignificante heroísmo, um paciente, dentre tantos naquele hospital, uma vida dentre tantas que lá já morreram, um hospital dentre tantos nesta cidade. Não quero ser herói, quero ser profissional. Salvar vidas não é mérito, é obrigação. Não quero nenhum agradecimento, nada que infle meu orgulho e rege a semente da soberba, eu quero é ser competente, salvar vidas com uma mão, sem que a outra saiba, e muito menos se orgulhe.

Vícios privados, virtudes públicas

O que afinal eu estava fazendo lá?

Esta é uma pergunta que sempre mereceu de minha parte respostas evasivas, mas afinal, o que me atrai ao feio,sujo, pobre e fedorento? Claro que eu poderia vir com um papo de Madre Tereza de Calcutá e dizer que estou lá apenas para ajudar e aliviar o sofrimento do mundo, mas esta conversa não convenceria nem a mim... Ou talvez eu esconda de mim mesmo uma causa secreta machadiana, um prazer sádico de ver e conhecer o sofrimento, talvez...

Isto me ocorreu em mais uma Visita Domiciliar, algo tão de rotina como simplesmente não poder fazer nada, tínhamos ido lá só para constar e para cumprir um papel burocrático e lá encontramos uma mãe pobre que ama os filhos como eles são, um irmão carinhoso como eu nunca tinha visto antes e uma família que eu não gostaria de marcá-la por simples detalhe, mas por todo um contexto e pela força de uma mulher que aguenta a vida de teimosa suportando com paciência o que não pode mudar, e com o amor a sobrecarga daqueles que só podem contar com ela.

Eu teria muito o que aprender com ela, talvez a VD tenha sido curta demais ou eu não tivesse a humildade de deixar que ela me ensinasse, mas algo me fez pensar muito naquela criança, o irmão mais novo. Sei que não é um fenômeno assim tão raro, e que está envolto em teorias que a esta altura do campeonato eu deveria conhecer de cór, mas o próprio desconhecimento de suas causas foi o que me fez pensar nas minhas.

O pequeno detalhe que me me originou as comparações foi o garoto mais novo insistir em automutilar-se, beliscava de forma repetida o ombro oposto e a coxa do mesmo lado, que já possuíam a pele calejada e diferenciada embora a mãe amarrasse um pano em seu punho para evitar este comportamento. Mas o que levava este menino a isto? Uma resposta, talvez nem tão possível e nem tão provável cujo valor pode estar restrito a este texto apenas, seja a presença da dor em si.

Eis que talvez se não for sádico, me concedo a desculpa de ser masoquista. Eis que a vida é um aprendizado, afirmação que vista de um enfoque mais prático do que filosófico nos leva a pensar na maneira como inseridos em um mundo que em muito independe de nossa vontade precisamos, a fim de justificarmos a nós mesmo a nossa presença e a necessidade de interagir com ele, sentí-lo, cada vez mais e cada vez mais intensamente.

Todo sofrimento deste mundo seria, como querem os budistas (eu não seria tão radical), criação do próprio sofredor, seja a partir de interpretações peculiares de fatos específicos da vida, seja através da busca por emoções cada vez mais intensas, entre elas, a dor. Teoria, exceções a parte, que não parece tão estranha a ninguém, ou não teria durado tanto tempo. Mas o que nos leva, então, a gerar todo este sofrimento?

Por mais contraditório que pareça, é a necessidade de me sentir vivo, seria o que me faz ir em busca do sofrimento, são as emoções que dão um sentido a nossa vida e, acreditem, a dor, por pior que seja, é muito melhor que o vazio. Em mim, talvez, uma incapacidade intrínseca à empatia, uma profunda anestesia emocional me fez aumentar, como um viciado, cada vez mais a minha dose, cada vez mais a minha necessidade de ver e sentir a dor.

Como um viciado. Quem afinal não tem vícios? E o que, afinal, melhor para a estética do nosso eternamente improvisado roteiro que expomos dos nossos personagens do que transformar estes vícios privados em virtudes públicas?

sábado, abril 05, 2008

Violino na parede

Tudo que sabia até então era da glicemia de jejum bem elevada e uma leve obesidade abdominal, ao exame físico sem outros sinais que valessem maiores preocupações, o professor, então, me deu aquele paciente com instruções claras: iniciar o tratamento com metformina e uma sulfoniluréia. E claro, a parte mais importante do meu treinamento e do seu tratamento, prover-lhe educação sobre hábitos e dieta.

Se por um lado, em agitados plantões na madrugada, desejamos que as coisas fossem mais simples e mais óbvias, as surpresas e caminhos inesperados que se descortinam de uma simples pergunta nos lembram de nossa função e nos estimulam a ficar atentos a cada desvio de olhar, cada tremida de lábio, cada pausa na fala. Gestos que revelam, justo por tentar esconder, segredos íntimos e transformam a entrevista em uma seqüência de passo potencialmente perigosos, perigosos porém belos.

E foi justo aí, quando questionei sobre hábitos alimentares, que ele revelou o que tinha conseguido esconder na anamnese. Não sei o que foi, mas certamente não foi a resposta padrão "só socialmente", que me fez fazer a pergunta que mudou radicalmente o seu tratamento: "Isto te incomoda?"

Claro que incomodava. Mas claro também que não era só isto. Como em uma pescaria onde ao morderem nosso anzol, ao invés de puxarmos o peixe para fora somos sugados para dentro de um oceano que nos revela cardumes e recifes, nossa conversa demorou bem mais do que eu havia planejado.

A vida, segundo ele, não nos merece para vivê-la, nos devora sem nos dar a oportunidade de a decifrarmos. Concordamos com o médico alemão que apontou a civilização como fonte de um imenso mal-estar e aqueles que nos moldam para viver nela como símbolo máximo de uma tensão que tornará por toda a nossa vida a forma como vemos uma coisa indissociável da forma como vemos a outra.

Se a beleza dos passos está em descobrir os segredos, o perigo está em não poder omitir-se uma vez descobertos. Ou, o que talvez seja pior, identificar-se com eles, a tal da contra-transferência. Ocorre que processos semelhantes se repetem na vida de todos, médicos ou pacientes, e a transmissão verbal de experiências reflete em nossa escuta, ao nos esforcamos para interpretar como a forma como transmitimos as nossa, e, conseqüentemente como a sentimos.

Outro alemão, muito antes qpue o tal médico, sugeriu que aquilo que chamamos de "vida" quando a contamos aos outros, e que ele chamou de "mundo", seria a interpretação racionalizada das experiências de nossos sentidos bastante influenciada por uma estranha sensação de necessidade que nunca é suprida, pois ela é parte inerente do "ser" humano e constantemente mal-interpretada como a necessidade "de alguma coisa", necessidade que mesmo que satisfeita com a tal "coisa" não deixa de existir, simplesmente porque não corresponde à interpretação feita. Eis a candidata n. 1 ao posto de motor fundamental do mal-estar. O mundo, então, segundo ele, não passaria de "vontade e representação".

O processo de representação e a sua racionalização simbólica é, então, a nossa ferramenta essencial de relação com o mundo e a origem psicológica a interpretação de nossas emoções e vontades. Daí a importância fundamental dos símbolos em nossa vida e a necessidade do médico, preocupado com o paciente como um todo, de lidar com eles.

Foi para lidar com este universo simbólico, e para manter a mente ocupada que sugerimos a arte. E desta sugestão que veio a descoberta que em sua parede havia um violino, lá colocado em resposta a conflitos cuja capacidade de superar, ou mesmo compreender, ia além de todas as forcas do paciente e não surpreende que este assunto tenha vindo a tona na conversa sobre diabetes e álcool, modificando radicalmente a forma como víamos a doença e, conseqüentemente, como iríamos guiar o seu tratamento, inclusive farmacológico.

Eu também tenho vários violinos em minha parede, pregados durante o meu processo de adaptação à vida em comunidade, alguns colocados a partir de experiências com as pessoas que me guiaram nesta adaptação. Hoje percebo que alguns devo jogar fora, outros sou obrigado a pegar e ensaiar algumas notas, talvez a maioria eu jamais consiga retirá-los. Embora saiba que parede não é lugar para se guardar violino, eu hoje já evito buscar culpados, pois percebi que a responsabilidade e as conseqüências são minhas e intransferíveis.

Sid

segunda-feira, março 10, 2008

Difícil

O professor me mandou ir chamar a próxima paciente, foi quando a vi pela primeira vez. Os olhos angustiados sobre mim me chamaram a atenção, o que me fez pensar que seria ela a próxima paciente. Tinha o nome nas mãos e perguntei a ela, não, não era ela, mas aproveitou para reclamar do atraso. Tentei confortá-la dizendo que não nos limitávamos ao tempo que o gestor disponibilizava para nós, íamos além, mesmo que perdendo dinheiro, era o nosso dever. Por isto alguns pacientes eram atendidos com atraso. A voz doce respondeu que não havia problemas, pois estava muito doente. Deste breve contato não pude jamais supor o desfeixo que teria poucos minutos depois.
Finalmente, chegou a vez dela.
Entrou nervosa no consultório e foi logo expondo a hipótese diagnóstica, mesmo antes da queixa principal. Percebi pela atitude raramente cordial do professor que ele estava farejando problemas. Tentávamos fazer a anamnese da paciente, mas ela queria ir logo aos finalmentes: a doença dela era tão grave que não poderia esperar nem mais um segundo, seja ela qual fosse. Afinal ela tinha lido tudo sobre os sintomas na internet e agora queria uma dosagem de todos os hormônios. TODOS? Perguntou o professor. Sim, todos. Foi o que ela leu na internet.
Olha, tentamos explicar, vamos antes excluir as causas mais simples? Deixa eu fazer um exame físico, colher a sua história e avaliar se precisamos algo mais simples. Mas ela queria que jurássemos que iriamos pedir TODOS os hormônios, não importa o quanto isto onerasse desnecessariamente o sistema. Desconversamos e conseguimos fazer alguma coisa, não sem antes perceber o seu sintoma mais marcante: estresse e ansiedade.
Algumas respostas eram evasivas, outras marcadas pelo uso de termos desnecessariamente técnicos, se queria nos impressionar, conseguiu fazer que duvidássemos do que dizia. O exame não revelou grandes coisas, a anamnese era pobre e ficou claro que precisávamos excluir outras causas. No final da consulta pedimos um Rx simples, uma US e um hemograma. O que se viu depois foi uma rápida explosão de nervosismo, angústia e raiva. Afinal ela sabia o que tinha e o que precisava, nós não. Tínhamos perdido um precioso tempo de nossa vida estudando e o professor, há muito sem paciência, sugeriu que a internet a tratasse, já que não confiava em sua experiência. Disse que iria arrumar um médico "decente", mas antes disso iria à ouvidoria do hospital.
Ela saiu, eu ainda pensei se não devíamos ter feito o jogo dela. Talvez não tivéssemos perdido a paciente, talvez tivéssemos criado um vínculo que depois poderíamos ter evoluído para a medicina verdadeira antes de nos perdermos em elocubrações internéticas, afinal, no caso de um tumor secretante todo aquele nervosismo, aquela raiva, poderiam se sintomas importantes. O professor respondeu que talvez, mas também todos aqueles sintomas poderiam ser causados pelo estresse. Paradigma do qual acho que jamais sairemos. Certamente seria melhor nos concentrarmos naqueles que queriam ser tratados, ou que aceitassem o nosso tratamento, ou, no mínimo que quisessem negociar.
O médico muitas vezes é exposto ao paciente que quer um determinado tratamento, uma determinada droga ou exame. Cirurgia bariátrica: quantas vezes na primeira consulta o paciente não chega logo pedindo a cirurgia, como se isto fosse resolver alguma coisa em sua vida. Às vezes pedem drogas tóxicas como a prednisona, inibidores de apetite ou mesmo psicotrópicos. Pior ainda quando saem dizendo à comunidade que você é um péssimo médico que nào aprendeu que estas drogas existem como os seus colegas. É difícil manter um mínimo de ética em um ambiente assim.
Logo depois de nossa paciente sair o professor foi chamado à direção, pediu que eu atendesse sozinho o próximo paciente. Entrou um homem de meia idade e dizendo que estava muito bem e que havia apenas uma suspeita de diabetes. Pedi para ver os exames: Hbglicada, 17%, Glicose, 564mg/dl, todos os outros exames compatíveis, inclusive uma hemoconcentração gigante. Na anamnese toda pergunta era respondida com um sonoro "não" e o nervosismo era intenso mas ele negava até o fim qualquer problema. Algumas coisas eram absurdas, como negar o emagrecimento súbito quando eu via marcas de estrias em seu braço e, quando confrontado com o fato disse que era "de nascença". Poderia acreditar na clínica, sempre soberana ao exame, mas o nervosismo e a insistente negação me incomodava. Havia algo nitidamente errado e eu não conseguia descobrir o que.
Insistiu que não queria nenhuma medicação, não prestou atenção ao aconselhamento de dieta e exercícios, nitidamente deixou claro que queria apenas fugir de lá o mais rápido possível e foi o que fez quando o professor voltou, bastante estressado, e sugeriu que apenas fosse repetido o exame. Ele foi e eu me senti sozinho no consultório. O paciente tem o direito de ser tratado ou não, não tem o direito de onerar desnecessáriamente o sistema como queria a nossa amiga, mas tem o direito de acreditar ou não no que dizemos. Mas é duro para nós não conseguirmos conquistar o paciente, fazer com que ele entenda que é para o seu bem, afinal, estudamos tanto e um dia acreditamos que isto bastaria para sermos idolatrados como deuses. Não basta, e precisamos nos acostumar com isto.
Ouvi dizer que São Pedro, o São Paulo, sei lá, o tal fundador da Igreja Católica, teria ido fundá-la na Grécia, então capital do conhecimento. Lá resolveu explicar aos gregos a doutrina pregada por Jesus. E começou a discursar apontando os aspectos racionais da doutrina e homem inteligente que era conseguia rebater críticas e, por fim, conseguiu com base em argumentos racionais convencer um grande número de gregos sobre a verdade da doutrina que apresentava. O resultado prático disto, no entanto foi quase nulo: acostumados com um grande número de Deuses, Jesus era apenas mais um, um bem interessante, admitiam, mas apenas mais um.
Paulo percebeu isto e, reza a lenda, e foi para Roma. Iluminado, iria agora conquistar o mundo: não pela mente, mas pelo coração. Os homens, ele tinha percebido, raramente fazem o que é lógico ou racional, em geral seguem seu coração e não o seu cérebro. Mil e novecentos anos depois Freud concorda e leva quase mais cem anos para Damasio estruturar uma elegante teoria neurocientífica para "provar".
Faz sentido. Mas tudo que eu disse até agora pode não ser verdade.
A função deste blog era então me desculpar, me auto-elogiar ou me expor e ser sincero?
Pensando bem, pela mente ou pelo coração eu tenha errado.
A primeira paciente, o estresse sendo sintoma ou sendo causa, mereceria uma atenção maior? Mereceria "entrar no jogo" dela para garantir sua colaboração? Talvez merecesse mais escuta, mais carinho, mais atenção do que os poucos minutos que reservamos. Talvez mais explicação sobre o que é a internet e menos orgulho ferido por ser substituído por um computador amorfo. Se uma vírgula ou uma palavra a menos fizesse diferença. Eu queria que ela tivesse ficado.
Ele também. Fui grosso. Estava estressado. (Não é desculpa) Assustei-o. Às vezes vemos nossos mestres agindo e atribuímos certas vitórias a certos comportamentos, mas talvez elas devessem ser atribuídas a outros. Até ser grosso, até assustar, é uma arte que não é fácil aprender e não está em livro nenhum, e é perigosa demais para se aprender por observação.
Melhor nunca mais tentar.
Errei.
Errei feio.
Logo na arte que me julgava bom.
Justo quando nos achamos bons demais, justo quando pensamos que sabemos, vem o real e nos dá uma bela lição de humildade.
Agradeço ao mundo por ser tão desafiante.

sábado, março 08, 2008

A causa secreta

Estávamos em visita domiciliar, a mãe, bem idosa, na cama o coração de tão fraco debatia-se agonizante para manter o pouco de útil que ainda lhe corria pelas veias ativo, e como que murmurando em desesperada agonia o sopro hipercinético conseguia ser mais audível do que as vagas reclamações, coisa da idade segundo Dr. Fortunato que a escutava com um gentil sorriso. Sim era ele mesmo, só que agora era médico, o enfermeiro de Machado de Assis reencarnado 147 anos depois, isto foi a um ano. Causas secretas nos levam a atitudes surpreendentes, causas estas que se expostas revelariam a lógica por trás da contradição e o absurdo.
Não havia dúvida que era ele, Dr. Fortunato, quem mais aguentaria tanta tristeza de modo de forma tão inabalável, não bastava o que era dito espontaneamente, ele ainda tinha que perguntar e insistir. Mas um problema lhe chamou a atenção: havia algo de errado com o filho da tal senhora, irmão da dona da casa. É claro que ele tinha que saber, precisava, agora mais que tudo, saber. Para tanto usou o argumento indiscutível: "Sou seu médico, eu TENHO que saber". E conseguiu o que queria. Eu não soube deste segredo, mas sei que este é apenas um dos muitos segredos que jamais saberei dos meus pacientes, agora o que saber deste segredo mudou na conduta médica do Dr. Fortunato é algo que eu também jamais saberei.
Esta história vai e volta em minha mente, e a cada sofrimento que vejo um paciente desnecessariamente submetido me vêem o enfermeiro de Machado de Assis e seu clone mais moderno. Algumas vezes a coisa não é tão óbvia, outras é mesmo discutível. O velho benzetacil na profilaxia da febre reumática, a discussão dos psicanalistas que falta aos médicos remoer as entranhas do sofrimento de seus pacientes, meramente questões profissionais, nada mais que isto. Talvez eles tenham razão só se aprende a andar andando e só se aprende a sofrer ressofrendo várias vezes.
Mas às vezes nem tudo é tão óbvio.
Entramos no quarto da paciente com uma missão explícita: fazer uma anamnese e voltar com um diagnóstico. Quer era infecto-parasitária era óbvio, afinal no alto da porta de entrada havia a sigla "DIP". E a pergunta clássica teve uma resposta trivial: "dor de cabeça", enquanto todos anotavam a resposta, poucos perceberam a ameaça da acompanhante: "Fale a verdade, não adianta mentir, depois eles vão ver em seu prontuário."
Porque a paciente mentiria? Talvez pelo mesmo motivo que desviava o olhar e buscava uma fuga, de sua acompanhante-irmã e dos desagradáveis internos. Um olhar atento à irmã poderia já dar bastante ajuda: o olhar de reprovação, a camisa da igreja evangélica, as ações de pena explícitas. E quanto mais vinham perguntas, mais a paciente se escondia, mais a irmã dava respostas evasivas até que veio o auge da tortura explícita: "a quanto tempo ela vem apresentando este comportamento?".
A irmã não conseguiu segurar mais o choro, apenas repetia: "Ela era tão forte... Porque ELA teve que agir assim?", eu também não consegui mais segurar a cena, em voz bem alta para que todos escutassem, pedi licença e fui. Quando eu saía, ainda escutei uma voz: "mas nós ainda não descobrimos a doença", "CID B23", respondi.
Muitas vezes não é culpa nossa, algumas é sim, realmente necessário. Mas será que para o paciente faz alguma diferença? Tortura é tortura seja qual for a face que damos a ela, seja qual for seus fins. E é claro que nenhuma tortura seria pior para a evangélica do que ter uma irmã que carrega em seu sangue a cólera divina aos males da modernidade e também não há tortura pior para tal pecadora ser lembrada o tempo todo que tudo que lhe acontece agora é uma punição por seu comportamento promíscuo.
De que adianta teorias científicas uma hora destas?

domingo, março 02, 2008

Assim a tranquilidade alimenta a minha escuridão

Lenore, não enfrente teus monstros sob pena de tornar-se um deles: aquele que contempla o abismo, pelo abismo é contemplado.
Sempre soube que não deixaria o filósofo romântico tão cedo, especialmente agora que todo este romantismo me enoja.
Os médicos estão irritantemente se polarizando entre os poderosos heróis, pedantes e arrogantes, mal sabem o triste fim que lhes aguarda enquanto os plantões, e às vezes as drogas da simples cafeína à irresistível dolantina, lhes drena o pouco que sobra de vida e humanidade, e os românticos derrotados, depressivos e solitários que foram atropelados pelo mundo antes mesmo de juntarem as forças necessárias para salvá-lo. 20mg de fluoxetina não vai te tirar desta. Você ainda não viu nada.
O sofrimento te consome e te obriga a escolher um caminho: ou se anestesia ou se destrói. A morte será sua companheira, a dor uma amiga inseparável, daquelas que adora detestar. O mal-estar da civilização a partir de agora é culpa sua, você foi incapaz de curá-la porque não estudou o suficiente. A resposta, o diagnóstico, o tratamento: tudo isto está depois daquela esquina, mas você é o imbecil, burro e incompetente que não conseguiu chegar lá.
Burnout: Será queimado vivo.
Escreva. Mantenha a sua sanidade. Você não criou o mundo, não pode salvá-lo. Síndromes, doenças, patologias só existem em livros e fora deles há o mundo cuja alegria e beleza é sua escolha ver, ou não. A morte não é culpa sua e o mundo depois de você será igual ao que era antes, mas o que acontece no meio é que é escolha sua.
Escute: cada paciente é uma vida, cada vida uma enorme oportunidade de aprender. Toque: sinta o humano, assuma o controle. Cure: ninguém disse que estudar não era importante, mas a cura é muito mais que conhecer, é saber, é crer, é viver. Sorria: muitas vezes só isto basta. Não espere o que não vem, não deseje o que não tem. Lute: mas não espere vencer e não se cansará nunca.
Escreva, não contemple o sofrimento, escrevendo você aprende, apreende, torna-o seu para o que você quiser. Refaz, revive, reconstrói a realidade, constrói a sua realidade, uma que corresponda ao seu anseio. Escreva, escreva muito e, um dia, esta realidade será a única que conhecerá.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Personagens

Eu ali não era eu, era um personagem. Contava a minha vida de personagem, de reunião do grupo de teatro, virou aula de teatro. Ridículo, simplesmente ridículo. Não passava pela cabeça dele que eu tivesse mais o que fazer do que ficar escutando um monte de pré-adolecentes em uma brincadeira imbecil? Mas a explicação dele chocou-me pela lógica e ficou a lição, do que disse e de que eu não sou sempre o único que "vê além" e que a minha existência como pessoa - e como aluno como outro qualquer - é parte de minha função na sociedade e, principalmente, nesta comunidade.
Somos todos personages: este que acabamos de inventar, aqueles que achamos que somos ou aqueles que os outros acham. Somos teatros, atores que encenam no palco do teatro cartesiano de cada um. Fácil de entender e fácil de aceitar, o difícil é lembrar disto sempre e agir de acordo. Mas não há como fugir.
A médica antes tinha reclamado: eles pensam que somos ricos. Não pensam, somos. Chorar miséria não criará um novo personagem, apenas tornará o antigo mais ridículo. E não importa de onde você veio, a cena da primeira reunião do grupo de teatro e a cena da médica dizendo que também vinha de uma comunidade carente misturaram-se em minha mente ao ver a primeira peça montada. Talvez não fosse a intenção de ninguém, mas eu me vi na peça. Claro que era eu, éramos nós, a diretora que queria doutrinar os alunos favelados, assim como ela na peça, nós também vínhamos nos aproveitar da miséria alheia para ganhar dinheiro do Estado com o sofrimento deles, e doutriná-los.
A quem queremos enganar? Sentimos orgulho de tornarmos santos e a raiva frente a ignomínia, tudo isto torna hipócrita qualquer tentativa de aproximação por igual. Isto não é possível e talvez só sirva para o nosso ego. Não somos superiores, mas ganhamos mais. Se o valor de um homem é medido pelo seu contra-cheque, é porque não foi-lhe mostrado outro valor e contra o fato por demais óbvio argumentos são inúteis. Aceite isto e cale-se.
Simplesmente não dá. O nosso personagem em nós mesmo também é julgado esteticamente como em qualquer peça, só talvez sejamos aqui mais cruéis. Aqui a estética traveste-se de ética e condena à uma vida de ódio e sofrimento aqueles que representam aos outros personagens que não condizentes com o mundo que construímos e nos satisfazemos em ter domínio sobre ele. Saber que somos sempre um personagem e que os padrões estéticos não foram criados por nós e, portanto, não precisamos aceitá-los cegamente ajuda a enfrentar a vida que independe de nossa vontade e compreender que nosso "imenso" salário não é para tentar impor uma forma de sermos visto, nem qualquer padrão seja ético ou estético, mas para cumprirmos o nosso dever como profissionais técnicos. Não estou lá para que o meu personagem tenha um roteiro bonito, mas para que os outros personagens tenham vida e saúde por toda a peça.
Bonito ou feio, rico ou pobre, eu quero ser um bom médico.

domingo, janeiro 13, 2008

O Grande Deus Asklepius Morreu

Peça aos médicos que lhe apresentem indicadores e eles levantarão o segundo quirodactilo, quem poderia supor o absurdo, que os médicos já não sabem nem mais o que fazem. Talvez Foucault diria que a maioria nunca soube, mas tudo bem, antes de eles se aperceberem como sustentação filosófica do Estado, quando os indicadores não faziam mais diferença que o quinto quirodactilo, já não serão mais: os indicadores que sustentam a nova religião.
A ignorância do exército estadunidense ao adotar o caduceu, símbolo de Hermes, deus do comércio, como insígnia de seu quadro médico talvez escondesse uma sinistra profecia: Asklepius perderia seu posto para o mensageiro. Como a águia da parábola de Esopo triste será o fim da medicina, que dá aos inimigos a própria arma com a qual é abatida.
Ao agir como mecanismo de controle social, a medicina precisou se universalizar, atingir a todos, evoluir de "humanitária" para obrigação do Estado e passou a ser exigida pelos controlados: de que vale um Deus se é só para os ricos? A massa precisava do Tanatos para ser controlada e Deus morto, Deus posto: a medicina que surge como nova fonte geradora de medos e pecados, a nova moral, a nova redenção, para ser Eros precisava de uma base que a sustentasse. A base que a sustenta, como o símbolo chinês Tai-Chi é a própria estrutura capitalista e como a cobra engole o próprio rabo a medicina precisou ser eficiente para ser universal.
Nem universal nem eficiente o ciclo quebrou, na melhor visão capitalista, o sistema faliu. Novos conceitos, novos valores, novos controles este agora, bem mais sutil mas avança com avançou a medicina: desmoralizando o antigo regime. Desumaniza a medicina e reclama da desumanização, mercantiliza a ciência, ridiculariza a arte, caricaturiza os médicos: sentem-se os semi-deuses, soberbos e vaidosos, bom tinham motivos para isto antigamente...
Tudo que é novo conspira a favor deste Deus sedento: não podemos fugir a ética e estética da "evolução", ou somos homens de nosso tempo ou simplesmente não somos. É preciso humanizar a medicina, dar humildade aos médicos, fazê-los escutar e usar o próprio paciente no processo de cura. O discurso do professor barbudo e de sandalhas é o mesmo do administrador engravatado: Só assim a medicina ficaria eficiente. A diferença é só a camisa de Che Guevara. Eficiente é o grito dos que acordarão do sonho romântico de revolução mas é também o mantra dos novos sacerdotes.
E nós médicos ainda sofreremos muito para perceber que já não somos tão especiais. A nós só nos resta o mal-do-século, como os românticos a dor de ser incompreendido, a depressão e a angústia, tínhamos a resposta para o mundo, acreditamos que salvaríamos, poderíamos, se deixassem. Por que ninguém nos ouve? Por que sou tão sozinho? Por que estão todos contra mim? Vivíamos em um planeta em que éramos ricos e respeitados? Mudamos de planeta e o poder nos enebriou tanto que nem percebemos...
Não choro a morte de nenhum Deus, mas de Foucault.

sábado, janeiro 20, 2007

Nem toda nudez será castigada

Um sujeitinho irritante. Esta é a melhor definição que eu poderia dar para ele. Chato, desagradável e arrogante. Do tipo que você imagina sendo criado pela avó e duas tias solteiras: jogando bolinha de gude no carpete e soltando pipa no ventilador. Mas me ensinou muito, devo admitir: uma ou outra manobra, cliques e estalidos e muita coisa sobre relação médico-paciente, esta última sempre pelo exemplo do que não fazer.

Especialmente na enfermaria feminina, um sujeito ridículo, expondo desnecessariamente o corpo daquelas senhoras e eu cobrindo por trás. Já nem sentiam mais vergonha, afinal somos médicos (assim elas pensam), mas eu ainda sinto. A nós o poder do jaleco branco e o estetoscópio nos confere a superioridade que esmaga a empatia, a elas desaparece o direito de ser sequer uma parte do que já foram, agora transformadas em meras pacientes-objeto.

E nós entramos como caçadores, exorcistas de um ser mais físico que qualquer um de nós: a doença. Sua eternidade – na nossa cultura médica – compensa de longe a falta de um corpo palpável, pois, afinal, possui um endereço: dona fulana, leito tal. Ah, sim! Humanizou-se a medicina e os hospitais! Chamamos agora pelo nome, de acordo com a boa prática da medicina: “Como é mesmo o nome da senhora? Ah, sei... Uhum...” E no fim das contas, são meras portadoras das doenças, sempre as mesmas... Foi para isto que você estudou tanto? Olha que eu nem me lembro de ter estudado tanto assim... E se afunde em vícios: médico, cura-te a ti mesmo!

Vejo estas senhoras me lembram um pasto ou me lembrariam o selvagem cão de guerra Jet Li? Me lembram meu cachorro. Eu não sei o que o meu cão pensa nem o que um boi pensa. Também não sei o que elas pensam, mas nós nos iludimos em saber. No filme Jet Li é criado como um cão, ninguém pode dizer que isto nunca aconteceu ou quais seriam os sentimentos dele, fingimos, simplesmente, que os animais não têm sentimentos e nós, seres humanos, temos, portanto não merecemos ser tratados assim. Haja dissonância cognitiva para sobreviver (e tentar ter um mínimo de empatia) a um Hospital!

Imagine enfurnado em uma cama, preso em uma jaula de fios e tubos, acorrentado a um soro e torturado por seres de jaleco. Você está preso por você mesmo, você não pode fugir porque não pode admitir: é loucura. É loucura mesmo. Você não quer ser louco, quer?

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Não morrerás

Subíamos a escada após um breve lanche na madrugada, o hospital em relativo silêncio nos permitia escutar nosso cansaço quando a paz relativa do saguão vazia foi interrompida por ele: “toda vez que passo por esta porta, eu desejo que ele morra.” Concordei em um gesto automático, eu sabia de quem ele estava falando.

A vida no hospital nos leva a emoções difíceis de relatar, algumas tão fortes que somos propositalmente esquecemos outras que levamos tempo demais para compreender o seu significado. A que me tomou conta naquele momento foi uma destas. Quem passasse no momento, talvez pensasse que estávamos falando de um estuprador, um assassino ou, quem sabe, até de nosso chefe ou um professor carrasco. Não, nada disto: era de um pai de família que, até onde sabíamos, era tão merecedor de viver quanto qualquer um de nós, uma pessoa boa e querida por seus familiares.

Uma doença pré-existente e um acidente automobilístico o deixaram imóvel, em Estado Vegetativo Persistente (EVP), respostas pífias ao eletroencefalograma porém com reflexos básicos preservados. A face da morte ainda viva.

Talvez alguns estejam esperando mais uma condenação sobre a crueldade médica, talvez estejam pensando que queríamos que ele morresse por preguiça, para puní-lo por ocupar um leito. Em defesa eu posso dizer que o leito não ficaria vazio e se quiséssemos paz e descanso, nada melhor do que um doente em EVP que não perturba, não enche o saco e nem é necessária nova anamnese ou exame – basta mantê-lo com a medicação já prescrita, não dá trabalho nenhum. Se ele morresse em nosso plantão teríamos sim, muitíssimo trabalho extra.

O que pouca gente entende é que somos jogados quase crus às formas mais explícitas de sofrimento humano e, em situações como esta, somos confrontados com a finitude de nossa própria vida. Ficar ao leito de um moribundo é sentir sua essência vital escapando aos poucos, não sei como descrever. Somos humanos e estamos lá, racionalizando a vida como uma máquina ou um tubo de ensaio, como se nossos sentimentos não existissem. De tanto fingir – dizem – eles somem mesmo.

Talvez fosse mais bonito se ele dissesse que queria um milagre, que o doente acordasse do EVP como que tocado por Deus, “levante e ande”. Mas a experiência nos lembra constantemente o quão pouco provável isto é. É melhor que ele morra, saia de nossas vistas e possamos ainda trabalhar na esperança.

Mas sentimentos, esperança, não servem só para atrapalhar o raciocínio?

Mas o raciocínio também incomoda. Pensar e ver esta situação nos mostra que mais do que mortais, somos também incompetentes frente às forças da natureza, nos retira assim o poder que fingimos ter, nós médicos. O que estamos fazendo ali, a não ser atrapalhando que a vida siga o seu curso? Somos como sacerdotes frustrados (e frustrantes) de uma nova moral, onde não só matar é pecado, como morrer também é.

Sid

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Faça amor, não faça merda


Não tive coragem.
Medroso assumido.
Gostaria de ser um herói, quem sabe eu ainda tento.
Pelo menos eu divulgo, pode não parecer nada, mas...
http://www.malvados .com.br/normalpr oject/

sábado, dezembro 02, 2006

Seis dedos

Sentada na mesa, a espera da cesariana, ela dava sua última entrevista como gestante, à pergunta sobre o nome do pai, a resposta em si já valeria a pena pensar e escrever, “assim de cabeça, eu não lembro não”. Isto nos coloca de frente a nossos preconceitos, como evitar julgamentos morais se fomos criados na mesma cultura que ela e ouvimos a vida toda, assim como ela, que as mulheres deveriam ser castas e as mães santas. E as crianças criadas sob a influência de um pai e de uma mãe.

Neste caso o que nos incomoda é o choque entre o que aprendemos, que o sofrimento humano é causado, na maioria das vezes, pela interpretação que damos dos fatos, e não pelos fatos em si. É pertubador, portanto, a nós juízes morais, a simples falta de sentimento ao anunciar isto, a pobre coitada, não dá a mesma importância que nós. Ignora os nossos valores, isto é imperdoável.
Mas isto, diria ela, é problema nosso.

E os nossos valores indicam que o nascimento tem que ser com hora marcada, anestesia e bisturi, sem gritos, sem choro, sem vida. A cesariana nunca foi a coisa mais emocionante do mundo, o ambiente asséptico, o silêncio da mãe, o automatismo do cirurgião, o sono do anestesista e a criança saindo, meio que com vontade de ficar, pelo lugar errado. E pensar que é assim, sujo e assustado que se começa uma vida, os braços desconjuntados crescerão e tentarão atingir o inalcançável, o coração que se debate desesperado ainda se espancará por emoções que ainda nem foram sonhadas e os olhos arregalados ainda chorarão muito mais. E que tudo isto, um dia, parará. Alegria e sofrimento, emoções a que aquela semente está condenada.

Curioso acadêmico, fiquei observando o bebê, segurado pela neonatologista que o examinava. Um susto me chamou a atenção, tão absurdo que tive que olhar para a minha própria mão: polidactia. Nas quatro extremidades ele tinha seis dedos perfeitos. Perguntei consternado à médica que respondeu gritando, entusiasmada, talvez pela oportunidade de eu ver algo tão raro em uma das minhas primeiras oportunidades de assistir uma cesária, talvez por quebrar a monotonia do plantão, sabe-se lá os motivos que levam a comportamentos absurdos...

Mas a felicidade dela não me contagiou. Talvez a tarde inteira assistindo a pacientes crônicos tenha me deixado soturno, talvez não só isto, mas imaginei aquela vida, começando em uma idade tão próxima a de sua mãe, com todas as dificuldades de se nascer em um hospital público em meio a miséria de um país virtual e uma comunidade perdida. E ainda por cima com seis dedos.

Sid

domingo, novembro 26, 2006

No Ceará não tem disto não.

Acho que nunca vai sair da minha memória, pelo menos assim espero, a imagem dela cantando Luiz Gonsaga. “Este tal de câncer...”, disse ela, “... vou me embora para a minha terra... lá não tem disto não...”

Na faculdade nos ensinam que os pacientes criam uma relação de dependência que às vezes torna difícil livrarmo-nos deles, o tal “desmame”. Não tenho visto isto. É duro admitir que é bem mais difícil para mim, vou sentir falta dela, de nossas conversas, do choro que nunca vi.

O choro que nunca vi. Um dia sua filha veio me dizer que estava preocupada com a depressão dela. Depressão? Sua mãe acabou de descobrir que tem câncer e você queria que ela estivesse sorrindo e cantando? Nunca vi uma mulher tão forte.

Foi pensando nisto que fui me despedir dela, como sempre agradeci com um sorriso o fato dela ter me ensinado a ouvir os tais dos “estertores crepitantes”, minha primeira paciente de pneumo. Ele estava linda, toda maquiada exibindo a foto do último neto à toda enfermaria, falava sem parar e repetia com orgulho a notícia da alta.

Consegui, com dificuldade, um segundo de exclusividade em sua atenção para perguntar o que ela iria fazer depois da alta. A resposta não poderia ser mais óbvia: “Vou voltar para a minha terra”. Mas como? E o resto do tratamento?

“Meu filho, a primeira coisa que aprendi nesta vida é que vou morrer. Vocês médicos querem nos enganar, fingindo que vamos viver para sempre... Ah! Mas a mim vocês não enrolam não! Eu vou é voltar para o meu Ceará! Vou morrer lá! Já fiz o que tinha que fazer, já criei minhas filhas e já vi os meus netos, já não sirvo mais para nada, só para morrer mesmo.”

Eu fiquei pasmo. Não esperava esta resposta. Cadê o medo da morte? Como alguém consegue dizer que “não serve mais para nada” com um sorriso no rosto? Tenho ainda muito que aprender por aqui, quando ela completou: “esta vida não tem significado nenhum, a não ser o que a gente dá para ela. Tudo acaba, tudo não é nada não. A gente pode ficar chorando pelo canto ou arrumar um jeitinho de ser feliz. Eu vou é voltar para minha terra e ir feliz...”

Quanto a mim, eu vou ficar aqui, pensei. Sempre andando pela enfermaria por entre sofrimentos, o coração apertado como uma criança perdida, sem entender, sem agir. Queria ser como ela. Mas ela me ensinou mais do que estertores crepitantes, me deixou com a impressão que a maioria dos problemas de nossa vida não valem a preocupação e que existe apenas um fio tênue de verdade que liga o que eles aparentam ser daquilo que realmente são, no final das contas, a pior coisa que poderia nos acontecer, a morte, é natural e inadiável.Vou sentir a sua falta.

Sid

domingo, novembro 19, 2006

Em paz

“Eu fecho os olhos e ela está sobre mim. Às vezes fica ali, me olhando, de pé, sozinha. Ou como uma sombra tenta me abraçar. Eu já a vi flutuando na janela sempre fechada, me aguardando. Eu posso correr, me esconder, mas não consigo fugir. Ela está sempre lá, me esperando.” Um paciente me disse isto uma vez, de vez em quando eu me lembro, como agora.

Esta paciente sim, tinha conseguido se esconder da morte. Há, pelo menos, dez anos. Agora estava quase completando cem. Ali, quieta, imóvel, na cama de sua casa. Os parentes, em busca da boa morte, haviam tirado ela do hospital, a desumanização e, por que não admitir, o custo do sistema de saúde tinha tornado impraticável. Uma decisão difícil, mas definitiva foi tomada: ela morreria onde sempre viveu, com dignidade e sem levar os que ficam à falência.

Não morreu, mantêm-se teimosamente viva em sua cama. Sem cuidados intensivos, sem equipamento. Não fala, não se mexe, não faz barulho. Acho que a morte simplesmente esqueceu dela. A família, que a trata com um carinho que raramente eu vejo dedicado aos idosos, é simpática com o médico, mas, talvez devido a minha presença, não poupou comentários incomodativamente irônicos em relação à medicina tecnológica, científica, asséptica e, em última análise, inútil.

E pensar que foram acusados de desrespeito, assassinato, eutanásia e sei lá mais o que... A medicina é mesmo como andar em pedras enlameadas: qualquer argumento pode voltar-se contra você. Qualquer palavra, qualquer certeza, qualquer atitude... É como que a vida insistisse em ensinar aos médicos humildade, pena que poucos deixam-se aprender.

Quando saímos, o médico me disse que a família o chamava sempre, preocupada com o conforto da paciente, queriam vê-la ir em paz. Agora ele sentia mais confortável pois ortotanásia, passou a ser a palavra da moda, com a chancela do Conselho. Mas buscar o conforto de um paciente que não fala, não expressa nada (nem dor) e talvez nem retenha memória, pode ser mais desafiante do que parece a primeira vista.

Decidiu retirar algumas medicações, argumentou aos familiares que não estavam mais fazendo efeito. Eu disse a ele que isto era eutanásia e não ortotanásia. Ele me explicou que não, a medicação nunca tinha feito efeito, receitara apenas porque não se sentia confortável em ser chamado e não tomar nenhuma “atitude”. Na hora concordei, aprendi. Mas agora eu penso que a atitude poderia ter sido explicar, conversar e, cuidar da família tanto quanto do doente. Por mais saudáveis que eles tenham me parecido, não deve ser fácil.

Sid

sexta-feira, novembro 03, 2006

Erros e Acertos

Logo quando eu o vi sentado, suando, tremendo e balbociando palavras inteligíveis percebi que seria um tema de meu blog. Não imaginei de pronto que este seria o título, de tão acostumado que estou por apontar somente os erros, como se os acertos não existissem, esta palavra ainda me causa estranheza... Mas talvez seja o início da construção da maturidade clínica, o início da percepção de que a vida, e a medicina, não é tão simples quanto parece à primeira vista, ao começarmos a compreender os processos que levam a formação da decisão clínica começamos a entender – e a aceitar – os erros que eventualmente podem aparecer no caminho.

Erros, no entanto, não foram feitos para serem aceitos, especialmente se nascem da falta de respeito e de comprometimento com aqueles que justificam a nossa própria presença no hospital, com isto em mente, ao perceber o sofrimento do doente fui perguntar ao residente se não haveria algo para fazer para amenizar, "todos aqui sofrem, ou não estariam aqui". Ainda tentei iluminar aquela pobre alma, tentando ser mais direto: "Será que não dá, ao menos, para liberá-lo?".

Não, o paciente tinha uma febre nitidamente infecciosa, era precisa que ficasse pronto o hemograma para que se determinasse se a origem era um vírus ou uma bactéria, excluir as mais comuns e guiar o tratamento. Paguei com a língua, o residente estava certo, fazia sentido então mantê-lo lá. "Se você quer ajudar ao mundo, vá ao laboratório e pegue o exame dele, é um bom começo." Fui.

Quando cheguei ao laboratório os exames estavam prontos: um teste rápido para HIV e um hemograma. Bom, eu espera mais, algumas sorologias, mas o hemograma nitidamente representava uma infecção de origem bacteriana, o que então justificava a clarividência do residente em não pedir mais nada. O cara é bom mesmo. Infecção bacteriana, cujo foco ele já havia me dito que não havia encontrado, supondo eu uma anamnese e um exame clínico bem feito, fiquei curioso para saber quais seriam os próximos passos...

Nestes momentos as realidades vão se formando em nossa mente para construir uma representação realmente funcional do mundo. A verdade em si, jamais saberemos, uma vez que o que guardamos é sempre uma interpretação dela: o que é era absolutamente certo agora, pode ser o erro mais absurdo daqui a pouco, para pouco depois tornar-se obviamente correto. Ao retornar, entreguei-lhe o resultado do exame e, após mais alguns minutos de espera, chamou o paciente e disse-lhe: "O resultado do senhor mostrou uma infecção bacteriana, mas ela é oportunista, o mal do senhor é uma infecção viral escondida, a qual não podemos fazer nada, o senhor volte para casa, Tylenol de 6/6h e espere melhorar".

Quase caí para trás, não era possível aquele médico que eu estava começando a admirar tivesse feito o paciente esperar tanto tempo por um exame que ele simplesmente não iria dar o menor valor. Eu tive perguntar, afinal me parecia um absurdo. "Esperei o exame de sangue para ter uma noção do estado paciente. Embora eu não tenha medido a temperatura dele, os resultados, você pode ver, indicam uma pessoa saudável submetida uma infecção que ainda nem é tão grave ainda. Como eu não encontrei o foco da infecção bacteriana eu não posso tratar algo que eu desconheço, portanto, não nos resta outra chance além de dizer para o paciente voltar para casa e , ou esperar que o foco apareça para podermos tratá-lo, ou esperar que a infecção se resolva sozinha, graças ao sistema imune do paciente que é plenamente competente." Esta é uma explicação plausível. Certo, minha admiração voltou.

No almoço, fui gabar-me aos colegas do que eu tinha aprendido. Que alguns absurdos não eram tão absurdos quando analisados e que não devíamos sair criticando tudo que os médicos fazem, antes de no mínimo permitirmo-nos a experiência. Eu estaríamos comportando-nos igual aos "leigos", aquela racinha desprezível...

"Bela visão. Mas alguns absurdos ainda assim são absurdos". Disse ele, cuja opinião certamente não era só para ser levada em conta e sim, na maioria das vezes, seguidas à risca. Voltamos à velha questão do que é certo e o que é errado. Um paciente que vai e nunca mais volta, não sabemos o que houve com ele, se ele morreu atropelado ou se ainda vive, curado. Ou se foi a farmácia, comprou AMOXIL e curou-se no dia seguinte. Jamais saberemos. Mas existem algumas coisas que podemos saber, disse ele, entre elas que o foco da infecção não precisa ser visível, mas pode ser subentendido pela clínica ou pela anamnese, será que um exame físico de um paciente febril em que sequer a temperatura foi medida foi realmente completo?

Devemos imaginar também que nem sempre a febre resolve-se por si só, pode lesionar as valvas cardíacas antes disto. E ainda completou em tom trágico: "Ele quer um foco? Ele pode ter um foco daqui a três dias: o sangue todo de um paciente em sepse"
Mais uma vez vemos que o certo é certo e o errado é errado, dependendo de quem vê, analisa e do que esta pessoa quer acreditar. Qual atitude eu tomaria? O que eu faria? Uma coisa é certa: exame clínico completo e boa anamnese, assim como canja de galinha, nunca fez mal a ninguém. Muito menos bom senso.

Sid