domingo, agosto 13, 2006

O dragão de Poliana

Fechei os olhos e vi o dragão de Poliana. Imaginei como seria e por onde andava. Solto a cabeça e sinto o seu fogo. O que me liga a ela, me lembra mais tatuagens. No peito escrito "GOTHIC", mais abaixo, sangue. Também havia dragões, mas não o dela. Tinha uma facada no flanco direito. Entrou preocupado no centro cirurgico. Tinha que fazer uma ligação, talvez fosse para avisar a Poliana que tinha sido ferido em uma briga. Eu dei meu celular sem cartão, mas não podia ser a cobrar. Uma pena. O anestesista percebeu o diálogo e riu com um carinho que provavelmente o moicano não via há muito tempo e disse: "Você agora tem outras coisas para se preocupar... Relaxe... Daqui a pouco você vai dormir." Obediente, ele fechou os olhos.
Entra o senhor doutor cirurgião. Rindo e comprimentando a todos. Olha para os residentes e diz em tom obviamente irônico: "Não me venham com perguntas imbecis, eu odeio estudante, já nasci staff." Tenho que admitir que teve paciência em todas as perguntas que foram feitas.
Ao olhar o paciente, enquando a enfermeira retirava os brincos e piercings (com bisturi elétrico não se brinca), viu as tatuagens, o corpo sarado nu e exposto, deixou transparecer uma contra-transferência inconveniente para o momento: "Um sujeito desces que se fura todo, só pode ser vontade de dar o cu."
Teoria interessante. A primeira coisa que me veio a cabeça foi esperar o sujeito melhorar e ir se oferecer gentilmente ao cirurgião para colaborar em pesquisas que relacionassem metal perfurando a pele com tendências homossexuais. Mas não vou mudar o mundo, é melhor deixar para lá. Homossexual ou não, afinal de conta, isto não era algo para ser discutido na cirurgia, até porque não faria a menor diferença.
Mas reflete nitidamente o que aprendemos: o paciente é um pedaço de carne, um modelo para nossas teorias, um apêndice desagradável da doença. Poliana me disse que no hospital é onde nascem, adoecem, tratam-se e morrem os valores morais de nossa alma. Ela me diz tanta coisa, me disse também para ler Foucault, já tinham me dito antes, mas nela eu acredito.
Ele ainda insistia: disse que odiava parto natural. Nada mais desagradável do que ficar convencendo estas desesperadas a parir, "faz força de cocô, mãe", isto é coisa que um médico diga? Claro que não, ele tem que poupar saliva para chamar os outros de viado. A cesariana é muito melhor: o cirurgião chega, a mãe está apagada, vai, corta, e entrega "aquela porra estridente" para o pediatra. Lava as mãos e vai embora.
Eu já tinha visto uma cesária. Quando o meu amigo me perguntou, eu disse que senti nojo. Não dos fluidos corporais, mas justo da assepsia. Tudo muito quieto e muito limpo. Não é como na ambulância da FUNASA, quando me senti "médico" pela primeira vez. 3h da manhã e a índia gritava, disse o motorista, só estamos nós dois, é contigo, doutor... Ele já tinha feito vários partos, eu, nenhum. Ficou o tempo todo do meu lado, me ajudando e dizendo o que fazer, sem a arrogância do staff. Retribuí o favor ajudando a lavar a Toyota...
Voltava a mim e via todos concordando com o doutor, enquanto ele buscava mais lesões no paciente. Técnica e responsabilidade ele tinha. É um ótimo cirurgião. Agora eu me lembro o verso de Nietzsche: "A seis pés acima da terra, à aurora, e abaixo de mim: o mundo, os homens e a morte." O cirurgião estava realmente acima de tudo, acima inclusive da moral que morrera ali mesmo naquele hospital.
Ética e moral. São diferentes. Moral é a ética escrita, ética é a teoria e cultura que determina. O problema destrinchado em sua essência é de ética. A moral dele está de acordo com a ética que se espera de sua posição, se minha ética não está de acordo, problema meu, o errado sou eu.
Pela minha cabeça passam os comentários sobre meus sentimentos no Blog, vejo que sou, assim como ela, um correspondente de guerra. Talvez escute as baterias anti-aéreas que sempre quis. Me vejo tocaiado, em território inimigo, selvagem cão de guerra em ação de comandos lançado na selva com a faca afiada e uma pedra de amolar, me vejo aguardando para matar aquilo que estou prestes a me tornar. Serei esfolado vivo. O progresso, Mársias, não pode ser detido. Fui delatado, me encontraram. Charlie-charlie, o campo de concentração, sem a menor esperança da Rede de Apoio à Fuga e Evasão...
Quando a moral e confrontada, agoniza e morre, resurge das cinzas uma nova ética que alivia a dor da imoralidade. Ética médica, máfia de branco, eu vou lutar até o final.
Sid

5 comentários:

Ana Nieto disse...

Doce Sid,
não poderia descrever a expressão no meu rosto ao topar com o título de seu artigo.
Amansastes o dragão como ninguém o fizera. Encontrar um eco de nossa voz me confortou de forma inimaginável. Encontros inesperados, traços imperfeitos do destino e nossa vida segue um rumo bem diferente.
Sua sábia amiga Poliana aqui te pergunta: será que nossos valores morais não são apenas atacados, mas tb revistos? Não sairemos dessas experiências mais cientes do que possuímos dentro de nós, enquanto outros simplesmente entregam-se e deixam-se ser levados ao campo de concentração?
Correspondentes de guerra presenciam o terror, mas alguns saem dos campos de batalha mais cientes da sua força e bravura. Obviamente nada podem fazer para mudar a área conflituosa e nela tentam apenas sobreviver, mas sabem que ao sair dali conhecerão mais de si próprios. Sentirão o seu sangue forte percorrendo as veias.
Ficamos calados à espera de um recanto onde seremos aceitos, enquanto não o encontramos deixamos os dragões nos protegendo.

Anônimo disse...

-Dica: se não vai largar a medicina (coisa que recomendo muito) com sua estranha visão sobre ela... que aliás parece querer estender ao outros profissionais médicos, sugiro fazer radiologia ou patologia, onde pelo menos não vai estar lidando diretamente com pessoas. Elas não te merecem... a medicina não te merece... infelizmente os concursos são injustos. Você passou no vestibular, e isso foi um erro. Estarei atento.
Seu professor

Ana Nieto disse...

Apenas para adoçar os lábios sedentos por novas guloseimas reflexivas, envio o link com um arquivo de pdf com textos de Michel Foucault sobre o surgimento da arquitetura hospitalar e da genealogia do poder médico.

-> http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/
microfisica.pdf

Extremamente enriquecedor aos pretensos profissionais de saúde do amanhã.
Abraços, Sid.

SIDEREUS NUNCIUS disse...

Para o meu professor anônimo:
Você nunca parou para analisar esta curiosa relação da medicina com o poder?
Sid

Anônimo disse...

-Não fuja aos comentários. Suas réplicas são escapistas e imbecis !
-Sua auto-propaganda aqui é estúpida. Incrível como suas conclusões são tão burras.
-Você se faz dono / revelador de uma verdade que só seus olhos enxergam. Veio ao mundo para ser idiota mesmo ? Perdedor...
-Dê um tiro em sua própria cabeça para mostrar todo o seu poder !!!
-Retardado !!!!!
Dr. Paulo