domingo, maio 29, 2005

Já me acharam eu aqui... (clínica, preenchimento e behaviorismo)

Querido diário, hoje descobri que tenho (ou pelo menos, tinha) um leitor.
Pelo menos um leitor! Não posso negar que tenha ficado lisongeado, apesar de achar que não fui capaz de demonstrar isto. Mas de certa forma duvido que o referido leitor mereça.
Isto por que achei, no mínimo, estranha a forma como ele se aproximou. Criticou a forma como me apresento, e fez ataques diretos a minha pessoa, pois, segundo seu particular juízo, ele acha que meu anonimato é errado, em si. Pois considerou isto como covardia. Devo estar errado, pois não sou professor da UFRJ. Se fosse teria, assim como ele, a capacidade de julgamento universal. Lamentei o fato que comentários ad homini não eram exatamente o que esperava com este blog.
Chamou-me de doente. Disse que ele era a cura.
Acho que já ouvi isto em algum dos filmes que preferia não ter visto. Mas não posso negar que é uma excelente sugestão de cantada para a próxima chopada.
Mas ele, conscientemente ou não, me fez imaginar uma questão importante para a clínica, que, afinal de contas, é o tema deste blog. Além do julgamento do mérito de um indivíduo considerar-se capaz de estipular que outro é essencialmente ou está em um estado, ou possui condutas que deveriam ser mudadas, a questão que penso em discutir agora é como se dá este processo.
Vou tentar expor o que eu considero clínica:
1 - Um indivíduo detecta conscientemente algo que ele julga capaz (e necessário) de ser mudado.
2 - Este indivíduo racionaliza este "algo" que o transforma em um discurso mais ou menos inteligível.
3 - O mesmo indivíduo transmite este discurso a outro que ele considera capaz de ajudá-lo em seu objetivo, chamemos este último indivíduo de "médico".
4 - O médico, ao escutar o discurso preparado pelo primeiro indivíduo, o racionaliza, e tenta incluí-lo em uma categoria pré-definada, uma, digamos, doença anteriormente patologicamente definida como entidade estanque e abstrata.
5 - Isto feito, constrói meltamente um mecanismo de cura, uma estratégia de ação.
6 - Racionaliza esta estratégia e formula um discurso que visa "convencer" o primeiro indivíduo de sua estratégia, e, assim, transmite a ele.
7 - O primeiro indivíduo, escuta o discurso do médico e o, digamos, re-racionaliza dentro de suas crenças e valores, reconstruindo inconscientemente a estratégia proposta pelo médico.
Talvez tenha esquicido de algo, mas acho que podemos considerar isto suficiente para prosseguir.
Se a clínica se dá realmente por este processo, podemos admitir que passa por processos de racionalização de duas pessoas diferentes, que os fazem de acordo com sua visão de mundo própria. Isto já seria complicado o suficiente se eu ainda não levantasse uma questão que o e-mail recebido pelo tal "Professor da UFRJ" me levantou.
Dr Ramachandram (eu acho que é assim que se escreve), um neurologista indiano radicado nos EUA (admito que se não fosse esta minha fascinação pela saúde pública pensaria em seguir a carreira de neurologia) propôs que "vemos" realmente muito pouco do mundo que se mostra a nós. A grande maioria das coisas "preenchemos" como preenchemos o vazia que deveria se formar em nosso ponto cego da visão.
Ora, o nosso herói desta postagem, o tal "Professor da UFRJ", sugeriu que eu seria doente apenas baseado nas três ou quatro postagens que viu aqui. Isto me chamou a atenção para o fenômeno demonstrado pelo tal indiano. Acho que temos a tendência de "preencher" tudo que conseguimos absorver do mundo, e este preenchimento é a base do processo de racionalização.
Ramachandram sugere que este mecanismo de preenchimento é eficiente para nossa sobrevivência imediata, mas pode nos levar a erros significativos quando exposto a formas mais elaboradas de exposição do mundo aos nossos processos cognitivos. Aí surgem as tais ilusões de óptica.
Eu imaginei, frente ao pouco que conheço do Behaviorismo, que a formação de ligações entre as coisas que ocorrem, tendo elas ligações ou não (como salivar ao tocar a campainha, que não possui nenhuma ligação "natural" à chegada da comida), é um processo básico, natural e instintívo, visto que foi conservado ao longo da evolução das espécies. Este processo estaria diretamente ligado ao preenchimento sugerido por nosso médico indiano (cujo nome não me arrisco a errar de novo).
Ora: eu diria que o mecanismo básico do behaviorismo, é uma tentativa geral de racionalização. A campainha toca, logo vem a comida. Racionalizado: a campainha traz a comida. Preenchido: construo toda uma teoria na qual a base empírica é que a campainha traz a comida e passo a ver o mundo a partir daí. Assim, a toda campainha que ouvir preencho com a certeza que me trará comida, e a todo barulho que ouvir semelhante a uma campainha (especialmente se estiver com fome) também.
O que isto tem a ver com a clínica?
O cérebro, segundo o mesmo indiano, detesta o vácuo.
Ao racionalizar o discurso do paciente, o médico, através do processo de preenchimento, segundo a sua visão de mundo construída pela interpretação de sua experiência ("interpretação" aí eu considerei frente ao mecanismo inconsciênte proposto pelo behaviorismo), "preenche" o que o paciente não disse (e o que ele não conseguiu prestar atenção ao que o paciente disse, pois captamos muito pouco do que o mundo nos mostra) com uma construção mental que é semelhante, mas não igual, ao que fora percebido pelo paciente de seu próprio sofrimento. Assim como o discurso do médico sofrerá o mesmo processo pelo paciente.
Qual a solução para isto? Eu não sei. Alguém tem alguma sugestão? Acho que somos humanos e imperfeitos. Talvez devêssemos escutar a mesma anamnese várias vezes, assim evitamos erros de nossa (natural) desatenção.
E quanto ao "Professor da UFRJ"? Acho que também houve um erro no preenchimento... Ele certamente racionalizou a meu respeito preenchendo todas as lacunas provocadas por mim ao valorizar a minha privacidade, mas, cometeu erros de "ilusão de ótica" e julgou que eu tivesse alguma "doença", propôs, na maior das boas vontades a tratá-la. Eu preenchi de forma antagônica, julguei como um ataque pessoal, e respondi com a única arma que merecem estes atques: o silêncio.
Sid

sábado, maio 28, 2005

Sem dormir

Hoje cheguei no alojamento dos médicos, enquanto me preparava eu escutava a conversa. "Tem é que agradar fulano". "Eu trouxe um monte de canetinhas do congresso e dei para ele". "Eu costumo a distribuir as amostras-grátis que eu ganho no consultório". Prestando mais atenção eu entendi. Trabalham em trezentos lugares diferentes para um salário que julgam justo, precisam agradar a algumas pessoas para poderem se manter na correria. Fiquei preocupado com o meu futuro. No vestibular eles pintavam de outro jeito.
Um dia normal no plantão. Em geral a gente dispensa um monte de gente pois "não é caso de internação". Acho que há algo de errado com tudo isto, afinal eu custo a acreditar que as pessoas busquem o pronto-socorro porque não têm nada melhor para fazer em suas casas.
Uma senhora veio trazida pela família. Não dormia. Insônia não é caso de emergência. Eles, entretanto, tinham certeza que era. Estranho. A paciente ia ser dispensada. O filho ameçaou registrar o caso na delegacia e abrir um processo judicial. "Interna esta velha para esta gente parar de encher o saco", disse a responsável pelo plantão.
Era uma doente crônica. Tentamos explicá-la o porque não era caso de internação: ela deveria procurar o seu médico para que lhe desse uma medicação para dormir. Ele deu. Não surtia efeito. A anamnese parou aí. Foi medicada: o mesmo bensodizepínico que lhe fora receitada por seu médico.
O filho insistia que a paciente tinha falta de ar. A médica examinou. Não tinha. Ora, quem era ele para dizer que tinha, não tinha. O filho disse que só levou a mãe dele lá para que durmisse pelo menos um dia, e, para isto, precisaria de oxigênio. O filho aparentemente não entendia nada de medicina, uma vez que a sua mãe não tinha falta de ar e, consequentemente, não precisava de oxigênio.
Esquecida na enfermaria, fui perguntá-lhe há quanto tempo não dormia: "três meses". Acho que isto justifica o desespero. Quiz saber o porquê. Fui perguntá-la: a medicação a fazia dormir, mas parava de respirar durante a noite. Acordava assustada, e grogue. Era melhor ficar sem a medicação, pelo menos respiraria, ela me disse, mas, afinal tinha ido lá apenas para dormir, pelo menos por uma noite. Tomou a medicação, não conseguiu respirar à noite. Nem teve suporte de oxigênio. Também não dormiu. Passou a noite conversando com a acompanhante da paciente ao lado, e me descreveu, pela manhã, todo o entra-e-sai da enfermaria.
Assim, quando perguntamos como ela estava, a resposta foi clara: "Estou ótima doutora, só quero ir embora para casa". Não tenho dúvida que é melhor ficar insône em casa. Perguntei ao seu filho se ela já tinha tido uma avaliação respiratória, se algum fisioterapeuta lhe havia sugerido exercícios para a respiração. "Fisioterapeuta?".
Voltei, questionei a doutora se por acaso o bensodizepínico não causaria uma depressão respiratória. "É claro que não. Você não estudou farmacologia? É a droga mais segura que existe." A dúvida ficou. Em casa descobri que nem o Goodman nem o Gilman estudaram farmacologia.
Disse que tinha observado que a paciente não tinha dormido. A resposta foi simples, como era de se esperar: "mas aí eu já não posso fazer nada". Esperava ao mínimo de tanta arrogância uma onipotência. Acho que estou errado.
Aprendi em aula que nunca deveria dizer: "eu não sei", pois quebra a confiança do paciente. Aprendi na prática a toda hora dizer: "eu não posso fazer nada". Não quero ser um aluno rebelde, pois se for nunca mais me chamarão para acompanhar clínicas nem cirurgias, quero estar junto dos grandes, quem sabe me farão enxergar mais longe, para além destas dúvidas que insistem em me perseguir? Não quero nunca mais pensar que deveria ser o contrário.
Sid

domingo, maio 22, 2005

Assim se desfazem as ilusões

Perguntaram se eu não queria ir acompanhar a clínica de um médico famoso. Quem não iria querer?
Esta cidade, bem maior do que eu gostaria, obriga ao aluno responsável adiantar-se aos eventuais atrasos e chegar cedo. Cedo demais. Sentei-me no ambulatório e, achando que havia perdido precioso tempo, iniciei a leitura de um livro. A vida falou mais alto. á muita coisa acontecendo na espera, coisas que poucos médicos um dia viram. Eu mesmo, devo ao acaso a descoberta.
Logo chega alguém para conversar. Qual o seu problema? Sem querer mesmo saber. E começa: vou morrer. Todos vamos. Mas estou mal. O médico não dá atenção. O médico é grosso. Nem mesmo me mede a pressão. Eu moro longe. Não posso ficar vindo aqui. O bom mesmo seria se morresse logo. Pacientes... Sempre reclamando...
Seu doutor, PhDeus chega. Me levanto, e vou falar com ele. Logo a doutora, sua aluna, se adianta: "Não chamei ninguém, aguarde lá fora." Ele apenas sorri e diz: "É um futuro colega." Ela sorri e se desculpa: "É que tem sempre um chato." E derrepente começo a dar razão aos chatos lá de fora.
Entra o primeiro paciente. 39 anos. Parecia 59. Pelo visto era conhecido. Fraqueza. Reclamava da falta de atenção pela equipe de médicos. Os médicos imediatamente retrucaram que o paciente não segue as orientações. Não segue o tratamento. Há quanto tempo não aparecia na fisioterapia? Como ousava ele reclamar de alguma coisa?
Tomei coragem e perguntei por que ele não fazia fisioterapia. A resposta foi imediata: morava a quase 100km dali, não tinha condições de pegar ônibus e nem pagar um tratamento fisioterápico. Será que seu doutor não poderia indicar um médico ou qualquer tipo de tratamento mais perto? A resposta foi imediata: ele que procurasse, "afinal eu não posso resolver tudo".
Na segunda paciente as reclamações se repetiram. Entrou a filha revoltada. Gritava pelo consultório que havia pelo menos 5 anos de tratamento e nenhuma melhora, ainda por cima agora esta insônia. A resposta foi imediata, afinal a paciente se recusava a tomar a medicação. Assim não havia condições de se tratar de ninguém. Rebeldes, estes pacientes. Será que gostam da condição de doentes , por que recusam a ajudar os médicos. Pronto, um resultado foi atingido: a paciente não melhorou, mas a filha agora estava do nosso lado. Coitada de sua mãe.
No quinto paciente enquanto ele (e eu) se emocionava ao dizer seus problemas e dificuldades entra uns orientandos de pós-graduação. Começaram a discutir a data da defesa da tese. Agosto não podia, Junho era muito cedo. Um contou uma piada, todos riram. Afinal não se viam há algum tempo. Eles foram embora. O desagradável, estraga-prazeres, apêndice insistentemente irritante da doença, a que alguns chamam de paciente, ainda estava lá. Seu doutor perguntou: "Onde estávamos mesmo?" O paciente apenas balançou a cabeça, como que dissesse que já tinha dito tudo. Eu me segurei para não dizer: "discutíamos a relação médico-paciente". Mas a consulta já tinha acabado.
Acho que não preciso ficar chovendo no molhado, tentando me lembrar de cada paciente. Voltei para casa deprimido. Alguém tentou me consolar: "quando você se formar o seu discurso vai mudar e você verá que fará uma diferença maior. Você tentou fazer o que pode". Fiquei com medo. Será que o meu discurso não vai mudar tanto quanto eu me formar que ficará igual ao deles?

sábado, maio 07, 2005

Sem novidades no front

Passaram-se uns três meses desde que começou o semestre, e, cheio de experança e vontade de brincar de médico, iniciei este blog. Característica usual de universidades públicas Brasil afora, ainda não começamos o tão esperado encontro com a clínica. O semestre letivo, assim como as outras matérias já começaram, mas como em tudo aquilo que certa classe de seres humanos podem enrolar, só tivemos até agora um encontro com a nossa professora, doravante chamada "preceptora".
Mas não posso dizer que não aprendi nada até agora. Aprendi a tirar a pressão. Admito que tive bastante dificuldade em achar o ponto certo em que pudesse ouvir o pulso do paciente. Cheguei a questionar a minha escolha referente ao futuro profissional. Mas não conseguir tirar a pressão de um paciente talvez não seja motivo suficiente...
Também aprendi que não posso dizer "não sei". Mas eu só sou um aluno, não sou médico ainda, para ser onisciente. Pelo visto, não vou aprender a ser feiticeiro, como sugero o título deste blog, mas Deus...
Achei que tivesse aprendido, até então, que o tratamento deveria ser construído junto com o paciente em um processo de escuta e avaliação onde o conhecimento do paciente deveria ser utilizado para se construir uma lógica de doença e cura e que isto por si só já seria parte da cura.
Mas aprendi que a construção de um efeito placebo deve vir de uma imagem do médico como semi-deus. Especialmente nos serviços de saúde pública de uma grande cidade, afinal é disto que estamos falando: saúde vista como política de massa. Saúde construída sob uma ótica industrial, saúde neo-liberal. É isto que estamos aprendendo, a inserir-se perfeitamente no sistema político que escolhemos (?).
É isto?
Sid