domingo, novembro 19, 2006

Em paz

“Eu fecho os olhos e ela está sobre mim. Às vezes fica ali, me olhando, de pé, sozinha. Ou como uma sombra tenta me abraçar. Eu já a vi flutuando na janela sempre fechada, me aguardando. Eu posso correr, me esconder, mas não consigo fugir. Ela está sempre lá, me esperando.” Um paciente me disse isto uma vez, de vez em quando eu me lembro, como agora.

Esta paciente sim, tinha conseguido se esconder da morte. Há, pelo menos, dez anos. Agora estava quase completando cem. Ali, quieta, imóvel, na cama de sua casa. Os parentes, em busca da boa morte, haviam tirado ela do hospital, a desumanização e, por que não admitir, o custo do sistema de saúde tinha tornado impraticável. Uma decisão difícil, mas definitiva foi tomada: ela morreria onde sempre viveu, com dignidade e sem levar os que ficam à falência.

Não morreu, mantêm-se teimosamente viva em sua cama. Sem cuidados intensivos, sem equipamento. Não fala, não se mexe, não faz barulho. Acho que a morte simplesmente esqueceu dela. A família, que a trata com um carinho que raramente eu vejo dedicado aos idosos, é simpática com o médico, mas, talvez devido a minha presença, não poupou comentários incomodativamente irônicos em relação à medicina tecnológica, científica, asséptica e, em última análise, inútil.

E pensar que foram acusados de desrespeito, assassinato, eutanásia e sei lá mais o que... A medicina é mesmo como andar em pedras enlameadas: qualquer argumento pode voltar-se contra você. Qualquer palavra, qualquer certeza, qualquer atitude... É como que a vida insistisse em ensinar aos médicos humildade, pena que poucos deixam-se aprender.

Quando saímos, o médico me disse que a família o chamava sempre, preocupada com o conforto da paciente, queriam vê-la ir em paz. Agora ele sentia mais confortável pois ortotanásia, passou a ser a palavra da moda, com a chancela do Conselho. Mas buscar o conforto de um paciente que não fala, não expressa nada (nem dor) e talvez nem retenha memória, pode ser mais desafiante do que parece a primeira vista.

Decidiu retirar algumas medicações, argumentou aos familiares que não estavam mais fazendo efeito. Eu disse a ele que isto era eutanásia e não ortotanásia. Ele me explicou que não, a medicação nunca tinha feito efeito, receitara apenas porque não se sentia confortável em ser chamado e não tomar nenhuma “atitude”. Na hora concordei, aprendi. Mas agora eu penso que a atitude poderia ter sido explicar, conversar e, cuidar da família tanto quanto do doente. Por mais saudáveis que eles tenham me parecido, não deve ser fácil.

Sid

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