domingo, dezembro 25, 2005

Abusado

Mársias foi esfolado vivo. Fiquei surpreso de tamanha crueldade, por mais que metafórica, ter sobrevivido tanto tempo na mitologia apenas para representar uma idéia. Seu crime deve ter sido, de todos, o mais hediondo.
Mársias foi esfolado por ter desafiado Apolo. Representaria a petulância do irracional ao desafiar o progresseo inexorável da racionalidade.
Mais o que isto tem a ver com o tema central do meu blog? Como toda boa e clássica metáfora, a metáfora de Mársias é quase que universal, se não, não teria durado tanto tempo.
Aparentemente, todos aqueles que desafiam o progresso inexorável ou a racionalidade (cuja melhor definição seria a "visão de mundo do poder estabelecido") seriam condenados imediatamente ao esfolamento vivo. A boa notícia é que algumas vezes este esfolamento também é metafórico e só pode ser visto com os olhos da história, o que pode significar muito pouco aos olhos do esfolado. A má notícia é que este esfolamento pode perder o seu caráter metafórico e tornar-se progressivamente real.
Uma imagem que logo me veio à cabeça foi daquele velho em surrado terno com um sorrizo monalísico sacudindo o chocalho e olhando para a câmera. A foto foi tirada mas o velho paracia não entender a curiosidade de queme stava atrás das lentes. Eu também não entendi. Não posso negar a minha decepção com o encontro com o pagé. Espera um feiticeiro cujo poder emanasse naturalmente por seus poros. E não aquela caricatura. Agora eu penso: era o próprio Márseas. Toda atribo, seus rituais e o que sobrou de sua cultura haviam sido esfolados vivos e sentiam este terror entre a carne que sobrara em volta de seus ossos. Aquela carne que agora servia para representar apenas a dificuldade de se adaptar a uma nova cultura carregando como cicatriz uma cultura anterior que ainda não tinha sido digerida o sufiiente para ser substituída. A falta de luta, a privação da próprio confrontamento sugerido pelo esfolado, apenas teria deixado como herança crual a reprodução caricatural do que um dia eles foram.
Nada me tira da cabeça que o que destruiu a cultura deles foi a medicina. nada seria mais perigoso. Nada. O próprio Béria citou todo o processo em seu Psicopolítica. Por que um povo iria acreditar em seu pagé, quando lhe dão de graça aspirina? Quando o pagé de branco chega em um carro barulhento e fumegante. Quando o poder emana daqueles que agora chegaram para "ajudar"?
Talvez alguns não concordem, mas isto foi o que me pareceu.
Era um Mársias esfolado vivo, talvez não na sua opinião, o paciente que eu vi confrontar o psiquiatra. "Doutor, eu não quero mais tomar o remédio."
"Você é quem sabe. Você deve assumir as responsabilidades de sua decisão, e todos os riscos. Mas quem define o tratamento é você mesmo. A vida é sua" etc, etc, etc...
O paciente simplesmente respondeu: "Mas o sr. não disse tudo isto quando me receitou... A responsabilidade, então, não era minha?" Foi suficiente petulância para o esfolamento. Ora, quem era ele para responder assim ao doutor? Um ignorante! Afinal a única preocupação do médico era com a própria saúde e bem estar do paciente, e agora esta!!! Esses pacientes! Quem eles acham que são?
Eu vi isto quando tive que optar pelo tratamento conservador ou cirurgia na perna. As opções: tratamento conservador: três meses de gesso.
cirurgia: em um mês eu estaria jogando futebol.
Dois meses depois da cirurgia, eu ainda não ando. Daqui há um mês me disseram que eu tiraria a muleta.
Mas parece que Apolo ganhou a disputa por meios poucos leais. Isto nos levaria a um juízo de valor. Ou não. Talvez isto nos leve a conclusão que a vitória da "racionalidade" (dominante) seria inexorável, o que excluiria (para todos os fins práticos) qualquer juízo de valor. Assim, alguns são esfolados, mortos e torturados - alguns literalmente - mas a humanidade segue seu curso. Tem que ser assim.
Será? Muito em breve, eu serei - de fato e de direito - o próprio guardião desta racionalidade: um médico. Mas eu acho que tem outra forma de se ver o mundo e de se relacionar com ele. A mesma racionalidade que impõe o esfolamento aos que a negam confere o poder soberano aqueles que possuem o conhecimento esotérico do mundo apartir da divisão deste em partes estáticas, cuja mudança implicaria necessariamente na transformação daquilo que "é" em qualquer outra coisa.
Tal poder é político, no sentido que ele só existe quando existem aqueles que acreditam e se submetem. Assim, não é único. E não é o que eu quero. Eu quero é entender o paciente, em sua própria racionalidade, consciente que é ele, e não eu, o maior especialista e verdadeiro conhecedor do seu sofrimento, assim como o único verdadeiramente capaz - e poderoso - para combatê-lo. Quero entender o paciente como um processo dinâmico em constante transformação, cuja fronteira entre o que ele é e o que está em sua volta nem sempre é tão bem delimitada. Quero ser, no máximo, um estímulo a cura. Não quero curar, quero despertar o poder de cura e a autonomia.
Eu acho que é possível. Será?
Sid

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Promessa

Agora sou paciente.
Um tanto quanto impaciente.
Eu fiz tudo que ele disse, e ele disse que estaria consolidado em um mês.
Um mês depois ele disse mais um mês.
Revolta. Não vou mais obedecê-lo.
A revolta passou. Acho que ser estudante de medicina me deu a "responsabilidade" de agir certo, pelo menos aos olhos dos outros. Talvez eu esteja apenas sendo sensato, já era hora mesmo.
Tenho que me lembrar sempre: quando eu estiver com o jaleco branco, não devo fazer promessas.
Sid

Paciente

Fui atropelado.
A cena fica indo e voltando na mente.
No local do acidente, fiz o que me disseram: tateei toda a perna e testei os ossos. Apenas dor, sem barulho.
Cheguei no hospital, eu disse dói, mas a perna não quebrou. O médico confiou em mim, analgésico e volta para casa. Mas eu quero um Raio-X. Perna quebrada.
Mudo de hospital. Vem a médica: "você não vai entender o que eu vou falar, mas..." Eu entendi mais do que ela pode imaginar, só não entendi a cara amarrada ao pedir uma segunda opinião.
Emergência talvez não seja o lugar para relação médico-paciente.
Ortopedistas eu acho que nunca quebraram a perna.
Mais uma lição extra-classe.
Sid

Homeopatia

Hoemopatia não é melhor que placebo, anuncia a "ciência", como parecem querer alguns.
Mas o estranho é que a prática clínica está recheada de curas advindas da homeopatia em pacientes desenganados pela medicina científica alopática.
Estranho, mas eu chego a conclusão que isto que estamos aprendendo na faculdade é pior que o placebo. Perdendo meu tempo à toa.
Acho que eu tenho que aprender muito com a homeopatia, mesmo que queira me tornar alopata.
Sid

segunda-feira, setembro 05, 2005

Amor de mãe

Férias.
Resolvi fazer um estágio com Médico de Família.
Mas primeiro foi preciso chegar lá.
Cheguei tarde em uma cidade no caminho. Vim de carona em um caminhão de boi. Arrumei uma pousada para ficar, mas estava sem sono. resolvi dar uma volta.
Na cidade só tinha um lugar onde me serviriam algo àquela hora: lá nas primas.
Tão logo cheguei na casa delas começou a chover, e com a chuva veio o frio.
Sentei e pedi uma cerveja. Ganhei grátis uma compania. Me disse que seu nome era Dayse. Tinha um casaco grosso e resolveu me abraçar. Por que não, estava frio mesmo.
Conversamos sobre tudo: já tinha sido casada, mas largou o marido, casou sem gostar dele, para fugir de casa, em outra cidade. Disse também que lá na cidade só havia uma profissão que ganhava mais que puta: eles pagavam R$ 5.000,00 para lavar e arrumar defunto no cimetério da cidade, mas ela tinha medo. Até hoje não sei se acredito.
No pequeno e apertado bar além de nós ainda tinha mais 4 meninas e uma senhora, a dona, acho. Uma das meninas parecia ser bem nova, mas não me arrisquei a perguntar a idade, também não sei se acreditaria na resposta. Além do que, hipocrisias à parte, certamente tirar ela de lá não resolveria nada para ninguém.
Ainda tinha dois bêbados e um outro rapaz. Este só olhava. Não expressava nenhuma emoção. Durante todo o tempo que fiquei lá não disse uma palavra ou manifestou qualquer reação. Segurança? Cafetão? Gigolô? Não perguntei também... A aparente calma do lugar escondia certamente a verve violenta de quem é acostumado a trabalhar duro para conseguir o pouco que tem. Manchas de sangue na parede e no chão, me lembravam isto.
"Tinta vermelha" disse minha amiga tentando mudar de assunto. Não era. Não havia um canto sequer pintado de vermelho. Não perguntei mais. O bêbado mais chato riu e disse que lá eles costumavam a sortear "um Escort", ou foi isto que eu entendi. A piada não agradou e eu entendi o que eles sorteavam eram "uns cortes".
Este era chato mesmo. Toda hora tomava um esporro. Oferecia valores bem acima da miédia para o programa R$ 50,00, ela disse que em geral fazia por R$ 15,00. Mas elas recusavam e xingavam ele. Ele exibia a nota, mas não adiantava. Parecia que a brincadeira divertia ambos os lados...
Já o outro, a minha amiga disse que tinha pena dele. Não saía de lá desde que a esposa o abandonou, e ela o abandonou justamente porque ele vivia bêbado. Algo tinha que ser feito, pensei. A vida é dura demais para se viver, acho que uma das funções do médico é ajudar as pessoas a ficarem neste planeta.
Pensava sobre isto quando chegou um monza "tubarão", com aspecto de novo, bem cuidado. Dele desceu uma senhora que entrou no bar sem olhar para os seus frequentadores e foi direto na moça mais velha.
Perguntou quanto o rapaz devia, pagou, pediu que tratassem ele bem - como vinham fazendo até então - agradeceu por tudo e disse que se responsabilizaria por qualquer despesa dele.
"É duro ser mãe" disse ela. "A sua mãe se preocupa muito contigo?", me perguntou. Eu ri, e disse que a tinha feito sofrer muito, mas que achava que ela agora tinha um certo orgulho de mim. Aí eu perguntei "e a sua?", tão logo eu disse isto, antes de esperar pela resposta eu já estava arrependido. Ela simplesmente disse: "muito..."
Enquanto isto, levaram o garoto lá para dentro e lá ele deitou um pouco. Continuei conversando com as meninas. A maioria nada falava. Só a minha amiga que comentava sobre tudo: política, a cidade, tudo...
Perguntou o que eu fazia. Se eu dissesse "estudante de medicina" certamente ela criaria um falsa impressão da minha disponibilidade financeira, daí eu disse "enfermeiro". Quiz saber o que eu fazia, como, onde e porque... Inventei estórias fantasiosas sobre resgate e emergência.
Fomos interrompidos por um grande barulho vindo lá de dentro. O tal rapaz havia caído. Ela sugeriu que eu fosse dar uma olhada.
Entrei pela primeira vez em um quarto de bordel. Não posse negar que fiquei impressionado. Fora o sangue nas paredes e no chão com o qual eu já havia me acostumado eu fiquei surpreso com as camas espalhadas separadas por panos velhos e rasgados.
Ainda tinha mais uma menina que eu não tinha visto, estava atendendo um cliente, o som alto do bar não tinha deixado eu perceber, mas agora eu via e ouvia, por entre os panos. Eu imaginei quando duas ou mais camas estivessem ocupadas... Deve ser difícil se concentrar assim.
Passei por cima de engradados de cerveja pelo chão e cheguei até a cama onde ele estava. Deitado perto de um armário com a porta quebrada, onde havia um urso de pelúcia rosa e vidros de perfume. Na parede fotos de artistas da TV. O lugar fedia a suor, mofo, poeira e perfume.
Cheguei perto dele, olhei seu rosto inchado e vi um grande hematoma acima do olho, manchas de "sangue pisado" iam desde a têmpora até a fronte, além disto ele tinha um pequeno corte um pouco acima do nariz, de onde escorria algum sangue. Pedi uma gaze e fiz um rápido curativo. Quanto ao hematoma eu sugeri um Rx. Sua amiga disse que era de uma queda anterior e que ele já havia tirado uma chapa. Estava tudo bem, disse ela.
"O que você vai fazer por mim?" ele me perguntou enquanto eu fazia o curativo. Pensei na função do médico de aliviar o sofrimento. Pensei em antidepressivos, psicoterapia, CAPS... Eu sabia que algo precisa ser feito. Sabia também que podia ser feito. Pensei no que eu poderia fazer. "NADA", disse. "Só quem pode fazer alguma coisa por você é você mesmo"
Acho que fiz o melhor que eu poderia. Pelo menos o olhar de aprovação da moça que estava cuidando dele me animou. A vida é dura e o mundo é cruel, preciso sempre me lembrar disto.
Sid

quarta-feira, agosto 03, 2005

Playstation

Como se não tivesse nada melhor para fazer, resolvi brincar um pouco - e ir jogar Playstation.
Tomei um susto quando reparei que o brinquedo não estava ao lado da cama, ao invés disto ele estava olhando pela janela. Chorando.
"A Juma morreu" "..." "Quando eu estava no CTI. Minha irmã só me disse agora."
Ele tinha sido um homem forte. Mestre de obras. Imaginei um gigante aos berros com a peãozada. "Filho da puta! Tu não sabe nem virar cimento? Tem merda na cabeça!?" Mas ao invés disto, eu tinha na minha frente um ser magro e frágil, apesar de alto, que chorava até vendo novela. Gostava de conversar comigo, mas só sobre o que tinha lhe acontecido, fisiologicamente. Quando eu tentava mudar de assunto, falar sobre outra coisa que não o seu deteriorado corpo ele mudava de assunto. "Aqui no hospital a gente não sabe o que está se passando lá fora."
Percebi rápido que o erro era meu. Só se pode falar - e pensar - sobre o que está em nossa mente. A vida dele se resumia ao hospital. A minha não. É preciso que se compreenda isto, mas é tão difícil! O único referencial que possuo é a minha própria mente, que eu vejo recriando as mentes do paciente mas baseada na única coisa que ela se pode basear: a nossa própria mente. Acho que tenho que procurar sentir mais e analisar menos. Não por razões esotéricas, mas por que a análise só pode ser feita sobre conhecimento prévio. Sentir eu não sei. Não custa nada tentar.
Tento também, às vezes, imaginar a minha imagem na mente dos outros, construída a partir do pouco que eles percebem de mim. Faço então o jogo inverso: lembro de quando briguei e quando chorei. Quem só viu uma parte acharia a outra contraditória. Assim compreendo melhor ele. Frágil. Mas que sempre cultivou nos outros a imagem de forte, mas nem isto agora consegue. Se já não é mais o mestre, só lhe restou agora o papel de doente. Sobrando-lhe como única forma que se relacionar com o mundo - e até mesmo de ver o mundo - o papel de paciente. A espera da morte. Juma foi mais rápida. O próximo seria ele.
Me lembrei do meu avô cujo único sorriso à beira da morte foi ao ver o Leão. Filhote, com o rabo abanando e querendo morrer. Quem não sorri para um filhote? Por que Juma não pode ir lhe visitar como toda a família pode?
Sid

sexta-feira, julho 29, 2005

MEMENTO MORI

Mandaram que fizéssemos uma campanha de prevenção da hipertensão arterial. Vinham os pacientes, as fichas médicas, tirávamos a pressão e aconselhávamos. Se persebêssemos que o caso seria de terapia medicamentosa, era só chamar a preceptora.
Já tinha-se, e muito, deixado de ser novidade, quando peguei a ficha de um sargento da polícia militar. Terceiro sargento, cabelos brancos. O rosto mostrava anos de soldado. Na ficha estava que estes anos marcaram mais que o rosto: 23 perfurações de bala. Perdeu rim, parte do intestino e toda a felicidade de viver.
"O senhor deveria controlar a pressão arterial?"
"Por que?"
"É uma das doenças que mais mata no país."
"E daí?"
Sid

Fantasmas

"Eu quero ir morrer em casa."
Sempre imaginei que eu ia, mais dia, menos dia, me deparar com esta frase. Imaginava também que seria no CTI. Admito, entretanto, que não me comoveu tanto quanto eu imaginei que ia. Ou a banalização da frase já me anestesiou ou entendi o raciocínio do paciente. E, a partir daí tirei minhas próprias conclusões.
"Aqui todo dia morre um, estou aqui há quase uma semana e já foram 5."
"O próximo vai ser você." Disse olhando o paciente ao lado, que esboçou um sorriso. Se eu fosse tentar me botar no lugar destas pessoas, acho que nada disto me pareceria tão surreal.
Olhei para as "janelas" fechadas com papel opaco, e as luzes fosforecentes, frias, eram 2 da tarde, mas se fossem duas da manhã não seria muito diferente.
"Quando a velha daquele leito se foi, eu vi os médicos e enfermeiros em volta, tentando fazer alguma coisa, e ela tentando entender o que estava acontecendo. Só que ela estava no teto, olhando para baixo. Sem entender nada."
"Acho que os mortos daqui são muito assustados. São estes médicos que enganam a gente o tempo todo. Você sabe, eles mentem para a gente. Falam baixo quando lêem os exames, para a gente não escutar mesmo."
"Olha: desde que eu vim para o CTI eu não posso mais me mover. Tem enfermeira para tudo. Quando eu estava na enfermearia eu ia até ao banheiro sozinho. Aqui tem um mulher até para lavar o meu cu."
"Eu tenho um sobrinho que é fisioterapeuta. Ele disse que eu não posso ficar assim. Ele se propôs a vir aqui, mas o doutor disse que o Hospital me enviaria um fisioterapeuta e até agora, nada."
"Aqui a gente tem a enganação de que vai ficar bom. A gente tem esta ilusão de saúde, mas estamos morrendo. Enganados. Esquecidos. Infelizes."
"Minha casa é cheia de gente. Cachorro. Gato. Tem um monte de vagabundo lá que eu sustento, toda hora sai uma porradaria. Faz a gente se sentir vivo."
"Aqui eu fico nesta cama. Tiraram o seu celular e a minha TV, disseram que o barulho incomodava os outros. Tudo bem... Acho que encomoda mesmo. Você sabe qual o horário que pode vir alguém? Só das 4 às 5. Uma hora. Todo dia, só aquele horário... E quem vem? Quem se dispõe a vir até aqui?"
"Acho que fecharam as janelas para a gente não pular. Olha: não faço questão de mais alguns meses assim. Já vi muita gente morrendo aqui, e eles me disseram que estão mais felizes agora. Eles disseram para eu não ficar enrolando não. Ir para casa me despedir de todos e ir encontrar com eles."
Saí do CTI estranhando minha reação. Eu queria estar comovido. Chorando, quem sabe? Grandes e fortes emoções. Nada. Estava calmo. Apenas tinha entendido o recado, entendi a lógica da conclusão. Entendi até que o stress fizesse o paciente delirar. Afinal, espíritos, não existem. Não em um hospital.
Fiquei pensando também em quanto é difícil entendermos o que se passa na cabeça do paciente. Conhecemos muito pouco deles, em todos os aspectos. Nos iludimos que temos uma noção do que ocorre quando na realidade apenas reproduzimos de forma fractal o pouco que sabemos até formar uma imagem verossímel da realidade. Mas não sabemos nada.
Fui procurar o médico responsável. Sugeri a baixa do paciente. Impossível, disse ele. Quanto estava saíndo, perguntei: "Doutor, existe algum impedimento para que ele faça fisioterapia?".
"Ele está fazendo."
"Ele disse que não"
"..."
"Merda... Por cadê a porra do fisioterapeuta?"
("Cadê a porra do pedido?")
Fiquei pensando. Quanto custa um fisioterapeuta? Quanto custa toda aquela parafernalha no paciente? O que importa mais: mantê-lo vivo ou mantê-lo confortável? Uma janela aberta... Vento... Sol... Tudo isto é de graça.
Por que nos iludimos que somos imortais?
Sid

segunda-feira, julho 25, 2005

Contra-transferência

Fui conversar com o paciente. Um senhor idoso e alegre. Tinha trabalhado na indústria naval, trabalho este que o deixou surdo. Como eu. Não escutava nada do lado esquerdo. Como eu. No meu caso tinha sido o estande de tiro no quartel, no caso dele as chapas de aço que se chocavam.
Tinha acabado de sofrer uma cirurgia no estômago. Coisa normal. Fui perguntar o que houve, mas não imaginei que a resposta me chocaria tanto.
Tinha um vizinho que o perseguia. E o xingava insistentemente. O ofendia e o observava. De início imaginei que ele tinha se metido em uma briga. Um tiro ou uma facada. Teve sorte, imaginei.
Mas ele continuou a narrativa, contou-me que o tal vizinho colocava escutas e câmeras escondidas por toda a sua casa. Desmontara a TV, mas o tal vizinho fora mais esperto, abriu-a antes e retirou a câmera antes que pudesse provar a família que estava certo. Mas ele o perseguia insistentemente. Aí ele me disse que tomou um vidro de cola. Precisava punir o vizinho.
Acabou me escapando uma pergunta talvez não tão óbvia quanto pareça: porque ele tomou cola se queria punir era o vizinho? A resposta me fez tremer: O vizinho tinha chegado ao limite do tolerável: disse que ia atacar sua netinha com quem ele morava.
Não aguentei a resposta. Era "óbvio", pelo menos para mim, que não havia vizinho nenhum, mas provavelmente uma esquizofrenia. Se ele tomou veneno para punir o "vizinho" que iria atacar a sua neta, minha dedução imediata é que a garato estaria correndo perigo, tão logo ele saísse do hospital. Pensei em matá-lo.
Quatro anos servindo no Operações Especiais, e nunca veio a oportunidade de uma missão real. Enquanto eu estudava para o vestibular, meus colegas estudavam para a polícia. Passaram, alguns, e vieram com aquelas histórias de como salvaram o mundo, e eu?
Agora eu tinha a minha oportunidade: um estrupador pedófilo em potencial.
Matá-lo certamente envolveria um planejamento que não seria viável na ocasião. Assim procurei o responsável do andar, que, como todo cirurgião, atendeu-me com o desdém que um acadêmico assustado merece. "Você ainda tem muito que aprender. Vou te dizer uma coisa: o tal paciente é esquizofrêncio, ele não segue a nossa lógica. Estamos em final de semestre. Você não tem nenhuma prova? Vá para casa estudar que você ganha mais."
Saindo do hospital vi dois pacientes conversando. Reclamavam dos médicos e do sistema de sáude, claro, como é comum aos pacientes. Um deles disse: "Queria ver se este doutorzinho faria isto comigo se eu fosse bandido." Aquilo foi como uma facada.
Será que eu iria ter a mesma vontade de matar, não um velho, mas um traficante e conhecido estrupador? Sei que certamente teria, mas agiria da mesma forma? Teria a mesma coragem?
Talvez como uma desculpa hipócrita imaginei que eu o correto não seria eliminar uma vida, mas sim o sofrimento nela. Talvez buscar a cura para os ímpetos de violência sexual. Mas isto é hipocrisia e covardia. Pode até ser verdade e ser o correto, mas o que me levou a esta conclusão não foi nada mais que a covardia.
Fui para casa estudar, era realmente a melhor coisa a fazer.
Sid

terça-feira, junho 14, 2005

CAVEIRA

Eu tenho uma caveira pendurada na parede do meu quarto. Duas, aliás. Uma em tecido emborraxado outra em metal. Já usei elas no peito. Me disseram que marcaria o meu coração. Já acreditei nisto.
De certa forma marcou. Por tudo aquilo que decidi estudar medicina. Sonhava em estabilizar um paciente animado pelo som de baterias anti-aéreas e a equipe de enfermagem em conduta de patrulha. A dificuldade em passar para uma universidade federal foi aos poucos mudando os meus interesses. Talvez tenha ficado mais maduro.
Quando ele entrou na sala, na sua ficha estava lá. Perguntei. Ele respondeu: paraquedista em 1983, comando anfíbio em 1984. Estranhei o meu comportamento, me empolguei mais do que acho que deveria, e do que acho que me empolgaria. Achei que devia ter vergonha disto.
Na realidade eu disse a ele que tínhamos aprendido a "deixar o corpo" e contar com a "moral" para sobreviver. Não tínhamos. Ele deixou isto claro com o desdém da resposta.
Polimiosite. Já começava a sentir o pulmão. Me lembrei de um refrão: "Eu já estive no inferno/E lá não tem fogo não/ Tem é muita água e enche o meu pulmão". A pior sensação que eu já tive foi tentar puxar o ar e só vir água. Não disse isto. Já tinha entendido a mensagem: o pior que fosse o charlie-charlie você sabe que tem um fim. Polimiosite não. Não perguntei, mas ele disse: era melhor morrer com uma bala.
Aquilo me marcou pois às vezes você acha que pode mudar com uma palavra, que tem uma idéia brilhante que ninguém pensou, mas não é assim. Dependemos da nossa interpretação dos nossos sentidos para reconstruir o mundo em nossas mentes e podermos trabalhar com ele. Esta reconstrução, para sair algo de útil, é então comparada com o nosso único padrão possível: nós mesmo. Acho que temos que trabalhar com a incerteza, pois não somos um padrão uniformemente confiável. Tão pouco confiável que, às vezes, este padrão falha até para nós mesmos.
Saímos de lá, conversamos sobre o paciente. Ele é forte, vimos isto, é louvável como consegue atravessar pelo que está passando com a impassibilidade que demonstra. Vimos ele saído do consultório, indo para casa e agindo como agiu na nossa frente: forte, impassível.
Agora eu penso: temos que lidar com a incerteza. Talvez ele tenha chegado em casa, onde ele é tão fuzileiro naval como um dia foi criança, bebê, frágil e indefeso. E chorou. Nunca saberei. Eu nunca estive no inferno.
Sid

terça-feira, junho 07, 2005

Como ser um campeão do mundo

Hoje fiquei acompanhando a equipe de enfermagem na pré-consulta pediátrica.
Não sabia que havia este tipo de coisa.
Ao contrário da consulta médica, e bem diferente de um hospital de grande porte, a porta fica aberta. Isto para mim soou estranho. Mais estranho tem soado o meu estranhamento. Por que fechar a porta? Por acaso alguém que estaria lá fora é alguma ameaça? Tudo bem que em certas consultas, a privacidade é essencial. Mas em outras não.
A relação entre as mães e a enfermeira pareciam ser as melhores possíveis, o que me fez lembrar a importancia deste profissional. E o valor que devemos dar a eles. Os pacientes dizem ao enfermeiro (ou ao agente de saúde) coisas que não diriam ao médico. Algumas vezes porque o médico não lhes dá entrada. Talvez os médicos os temam. Gente pobre e feia dá medo.
Um exemplo foi dígno de nota: estávamos pesando e medindo um garoto, quero dizer: a enfermeira o pesava, eu apenas brincava com ele, quando me entra uma médica. A mãe do garoto fala para a tal doutora: "Você, por acaso, se chama Luiza?". Sem resposta. Pacientes, muitas vezes são invisíveis. Outra tentativa, desta vez mais enérgica. A resposta veio em um tímido "sim" que mal pode esperar para ser emitido ainda enquanto a doutora estava na sala. Gente pobre e feia dá medo. Espero aprender a lidar com este meu medo.
Depois veio a mãe do garoto hiper-ativo. Me pareceu narcoleptico. O neurologista receitara neuleptil. A mãe estava preocupada, o garoto antes não prestava atenção as aulas pois era hiperativo, agora ele simplesmente não conseguia ficar acordado. Isto deu motivo sufiente para o psicólogo condenar o médico. Não acho que vá haver vencedor nesta briga. Também não me pareceu que a melhor estratégia farmacológica seja esta. Mas, lembre-se que estou no SUS. Nada aqui é o melhor. Mas havia algo de errado. O garoto, de 7 anos, acusava os pais de o espancarem e o drogarem. Drogar, bom, davam o neuleptil para ele. Quanto a espancar eu pedi para ver as marcas. Não havia. Ele disse que foi há muito tempo. A enfermeira disse que sempre ele dizia a mesma coisa, mas nunca percebera marcas. O garoto deve estar sofrendo muito, ninguém inventa uma história destas à toa. Perguntei se foi investigado desde o problema da moda, abuso sexual, até outros tipos de sofrimento, como morte ou traumas na família. Não, era mais um. Neuleptil nele e ele não pertuba mais. Embrulha e manda.
Havia um armário de medicamentos com a enfermeira. Alguns deles controlados. Perguntei para que serviam. Pergunta imbecil. Para dispensar, ora. Para pacientes? também. Uma faxineira entrou na sala. Disse que tinha dor de cabeça, estava brigando com o marido e não dormia. Novalgina e Dalmadorm. Para que se apurrinhar indo ao médico. Afinal, quem você acha que ganha amostras grátis, disponibiliza em um armário de vidro aos cuidados da enfermeira? é claro que diagnosticar e receitar são atos médicos. Alguém duvida? Ou por que você acha que a faxineira do posto de saúde não procura o médico?
Pacientes são invisíveis e dispensáveis. Especialmente os do SUS. Neuleptil, benzetacil, quadriderm... Rápido e simples. Para que um diagnóstico apurado?
Doutora Plata eu ainda não tive oportunidade de conhecer. Ainda não faltei nenhum dia ao posto. Eu vi a enfermeira remarcando seus pacientes. Era o quarto plantão que não aparecia. Desta vez era asma. Coitada. Doutora Sônia, chega sempre sorridente, brincando. Atende todos os seus pacientes e eles a adoram. É uma das únicas que cumpre o seu horário de maneira razoável. Trabalha das 13:00 às 18:00. Chegou no posto 16:20. Quando eu saí às 17:00 ela atendia o seu último paciente. Médica exemplar.
A enfermeira esta revoltada. Acabara de ter uma reunião. Será instalado um cartão de ponto (para a equipe de enfermagem, claro) e o horário deles, que antes era até as 16:30 quando não são mais aceitos pacientes, salvo emergência, será extendido até as 18:00. A médica, chefe o posto, disse que "quem não quizer trabalhar" pode colocar-se à disposição. Ainda bem que tem gente que não precisa.
Médicos são tratados diferente. Quem não se sentiria diferente?
Acho que um dia terei que administrar um PSF. Pelo menos assim espero. Sonho em liderar um. No quartel o sargento me ensinou a diferença entre liderar e administrar (na minha opinião o Sgt Dorneles não fazia uma coisa nem outra, mas tudo bem). Eu pensei no Flamengo. Sou muito novo para saber se esta história é verdade ou não. Mas me disseram que o Flamengo só foi campeão do mundo por que o Zico, que era o melhor jogador, era o primeiro a chegar nos treinos e quem mais se esforçava. Talvez o time tenha ganho pois tinha um líder.
Sid

domingo, maio 29, 2005

Já me acharam eu aqui... (clínica, preenchimento e behaviorismo)

Querido diário, hoje descobri que tenho (ou pelo menos, tinha) um leitor.
Pelo menos um leitor! Não posso negar que tenha ficado lisongeado, apesar de achar que não fui capaz de demonstrar isto. Mas de certa forma duvido que o referido leitor mereça.
Isto por que achei, no mínimo, estranha a forma como ele se aproximou. Criticou a forma como me apresento, e fez ataques diretos a minha pessoa, pois, segundo seu particular juízo, ele acha que meu anonimato é errado, em si. Pois considerou isto como covardia. Devo estar errado, pois não sou professor da UFRJ. Se fosse teria, assim como ele, a capacidade de julgamento universal. Lamentei o fato que comentários ad homini não eram exatamente o que esperava com este blog.
Chamou-me de doente. Disse que ele era a cura.
Acho que já ouvi isto em algum dos filmes que preferia não ter visto. Mas não posso negar que é uma excelente sugestão de cantada para a próxima chopada.
Mas ele, conscientemente ou não, me fez imaginar uma questão importante para a clínica, que, afinal de contas, é o tema deste blog. Além do julgamento do mérito de um indivíduo considerar-se capaz de estipular que outro é essencialmente ou está em um estado, ou possui condutas que deveriam ser mudadas, a questão que penso em discutir agora é como se dá este processo.
Vou tentar expor o que eu considero clínica:
1 - Um indivíduo detecta conscientemente algo que ele julga capaz (e necessário) de ser mudado.
2 - Este indivíduo racionaliza este "algo" que o transforma em um discurso mais ou menos inteligível.
3 - O mesmo indivíduo transmite este discurso a outro que ele considera capaz de ajudá-lo em seu objetivo, chamemos este último indivíduo de "médico".
4 - O médico, ao escutar o discurso preparado pelo primeiro indivíduo, o racionaliza, e tenta incluí-lo em uma categoria pré-definada, uma, digamos, doença anteriormente patologicamente definida como entidade estanque e abstrata.
5 - Isto feito, constrói meltamente um mecanismo de cura, uma estratégia de ação.
6 - Racionaliza esta estratégia e formula um discurso que visa "convencer" o primeiro indivíduo de sua estratégia, e, assim, transmite a ele.
7 - O primeiro indivíduo, escuta o discurso do médico e o, digamos, re-racionaliza dentro de suas crenças e valores, reconstruindo inconscientemente a estratégia proposta pelo médico.
Talvez tenha esquicido de algo, mas acho que podemos considerar isto suficiente para prosseguir.
Se a clínica se dá realmente por este processo, podemos admitir que passa por processos de racionalização de duas pessoas diferentes, que os fazem de acordo com sua visão de mundo própria. Isto já seria complicado o suficiente se eu ainda não levantasse uma questão que o e-mail recebido pelo tal "Professor da UFRJ" me levantou.
Dr Ramachandram (eu acho que é assim que se escreve), um neurologista indiano radicado nos EUA (admito que se não fosse esta minha fascinação pela saúde pública pensaria em seguir a carreira de neurologia) propôs que "vemos" realmente muito pouco do mundo que se mostra a nós. A grande maioria das coisas "preenchemos" como preenchemos o vazia que deveria se formar em nosso ponto cego da visão.
Ora, o nosso herói desta postagem, o tal "Professor da UFRJ", sugeriu que eu seria doente apenas baseado nas três ou quatro postagens que viu aqui. Isto me chamou a atenção para o fenômeno demonstrado pelo tal indiano. Acho que temos a tendência de "preencher" tudo que conseguimos absorver do mundo, e este preenchimento é a base do processo de racionalização.
Ramachandram sugere que este mecanismo de preenchimento é eficiente para nossa sobrevivência imediata, mas pode nos levar a erros significativos quando exposto a formas mais elaboradas de exposição do mundo aos nossos processos cognitivos. Aí surgem as tais ilusões de óptica.
Eu imaginei, frente ao pouco que conheço do Behaviorismo, que a formação de ligações entre as coisas que ocorrem, tendo elas ligações ou não (como salivar ao tocar a campainha, que não possui nenhuma ligação "natural" à chegada da comida), é um processo básico, natural e instintívo, visto que foi conservado ao longo da evolução das espécies. Este processo estaria diretamente ligado ao preenchimento sugerido por nosso médico indiano (cujo nome não me arrisco a errar de novo).
Ora: eu diria que o mecanismo básico do behaviorismo, é uma tentativa geral de racionalização. A campainha toca, logo vem a comida. Racionalizado: a campainha traz a comida. Preenchido: construo toda uma teoria na qual a base empírica é que a campainha traz a comida e passo a ver o mundo a partir daí. Assim, a toda campainha que ouvir preencho com a certeza que me trará comida, e a todo barulho que ouvir semelhante a uma campainha (especialmente se estiver com fome) também.
O que isto tem a ver com a clínica?
O cérebro, segundo o mesmo indiano, detesta o vácuo.
Ao racionalizar o discurso do paciente, o médico, através do processo de preenchimento, segundo a sua visão de mundo construída pela interpretação de sua experiência ("interpretação" aí eu considerei frente ao mecanismo inconsciênte proposto pelo behaviorismo), "preenche" o que o paciente não disse (e o que ele não conseguiu prestar atenção ao que o paciente disse, pois captamos muito pouco do que o mundo nos mostra) com uma construção mental que é semelhante, mas não igual, ao que fora percebido pelo paciente de seu próprio sofrimento. Assim como o discurso do médico sofrerá o mesmo processo pelo paciente.
Qual a solução para isto? Eu não sei. Alguém tem alguma sugestão? Acho que somos humanos e imperfeitos. Talvez devêssemos escutar a mesma anamnese várias vezes, assim evitamos erros de nossa (natural) desatenção.
E quanto ao "Professor da UFRJ"? Acho que também houve um erro no preenchimento... Ele certamente racionalizou a meu respeito preenchendo todas as lacunas provocadas por mim ao valorizar a minha privacidade, mas, cometeu erros de "ilusão de ótica" e julgou que eu tivesse alguma "doença", propôs, na maior das boas vontades a tratá-la. Eu preenchi de forma antagônica, julguei como um ataque pessoal, e respondi com a única arma que merecem estes atques: o silêncio.
Sid

sábado, maio 28, 2005

Sem dormir

Hoje cheguei no alojamento dos médicos, enquanto me preparava eu escutava a conversa. "Tem é que agradar fulano". "Eu trouxe um monte de canetinhas do congresso e dei para ele". "Eu costumo a distribuir as amostras-grátis que eu ganho no consultório". Prestando mais atenção eu entendi. Trabalham em trezentos lugares diferentes para um salário que julgam justo, precisam agradar a algumas pessoas para poderem se manter na correria. Fiquei preocupado com o meu futuro. No vestibular eles pintavam de outro jeito.
Um dia normal no plantão. Em geral a gente dispensa um monte de gente pois "não é caso de internação". Acho que há algo de errado com tudo isto, afinal eu custo a acreditar que as pessoas busquem o pronto-socorro porque não têm nada melhor para fazer em suas casas.
Uma senhora veio trazida pela família. Não dormia. Insônia não é caso de emergência. Eles, entretanto, tinham certeza que era. Estranho. A paciente ia ser dispensada. O filho ameçaou registrar o caso na delegacia e abrir um processo judicial. "Interna esta velha para esta gente parar de encher o saco", disse a responsável pelo plantão.
Era uma doente crônica. Tentamos explicá-la o porque não era caso de internação: ela deveria procurar o seu médico para que lhe desse uma medicação para dormir. Ele deu. Não surtia efeito. A anamnese parou aí. Foi medicada: o mesmo bensodizepínico que lhe fora receitada por seu médico.
O filho insistia que a paciente tinha falta de ar. A médica examinou. Não tinha. Ora, quem era ele para dizer que tinha, não tinha. O filho disse que só levou a mãe dele lá para que durmisse pelo menos um dia, e, para isto, precisaria de oxigênio. O filho aparentemente não entendia nada de medicina, uma vez que a sua mãe não tinha falta de ar e, consequentemente, não precisava de oxigênio.
Esquecida na enfermaria, fui perguntá-lhe há quanto tempo não dormia: "três meses". Acho que isto justifica o desespero. Quiz saber o porquê. Fui perguntá-la: a medicação a fazia dormir, mas parava de respirar durante a noite. Acordava assustada, e grogue. Era melhor ficar sem a medicação, pelo menos respiraria, ela me disse, mas, afinal tinha ido lá apenas para dormir, pelo menos por uma noite. Tomou a medicação, não conseguiu respirar à noite. Nem teve suporte de oxigênio. Também não dormiu. Passou a noite conversando com a acompanhante da paciente ao lado, e me descreveu, pela manhã, todo o entra-e-sai da enfermaria.
Assim, quando perguntamos como ela estava, a resposta foi clara: "Estou ótima doutora, só quero ir embora para casa". Não tenho dúvida que é melhor ficar insône em casa. Perguntei ao seu filho se ela já tinha tido uma avaliação respiratória, se algum fisioterapeuta lhe havia sugerido exercícios para a respiração. "Fisioterapeuta?".
Voltei, questionei a doutora se por acaso o bensodizepínico não causaria uma depressão respiratória. "É claro que não. Você não estudou farmacologia? É a droga mais segura que existe." A dúvida ficou. Em casa descobri que nem o Goodman nem o Gilman estudaram farmacologia.
Disse que tinha observado que a paciente não tinha dormido. A resposta foi simples, como era de se esperar: "mas aí eu já não posso fazer nada". Esperava ao mínimo de tanta arrogância uma onipotência. Acho que estou errado.
Aprendi em aula que nunca deveria dizer: "eu não sei", pois quebra a confiança do paciente. Aprendi na prática a toda hora dizer: "eu não posso fazer nada". Não quero ser um aluno rebelde, pois se for nunca mais me chamarão para acompanhar clínicas nem cirurgias, quero estar junto dos grandes, quem sabe me farão enxergar mais longe, para além destas dúvidas que insistem em me perseguir? Não quero nunca mais pensar que deveria ser o contrário.
Sid

domingo, maio 22, 2005

Assim se desfazem as ilusões

Perguntaram se eu não queria ir acompanhar a clínica de um médico famoso. Quem não iria querer?
Esta cidade, bem maior do que eu gostaria, obriga ao aluno responsável adiantar-se aos eventuais atrasos e chegar cedo. Cedo demais. Sentei-me no ambulatório e, achando que havia perdido precioso tempo, iniciei a leitura de um livro. A vida falou mais alto. á muita coisa acontecendo na espera, coisas que poucos médicos um dia viram. Eu mesmo, devo ao acaso a descoberta.
Logo chega alguém para conversar. Qual o seu problema? Sem querer mesmo saber. E começa: vou morrer. Todos vamos. Mas estou mal. O médico não dá atenção. O médico é grosso. Nem mesmo me mede a pressão. Eu moro longe. Não posso ficar vindo aqui. O bom mesmo seria se morresse logo. Pacientes... Sempre reclamando...
Seu doutor, PhDeus chega. Me levanto, e vou falar com ele. Logo a doutora, sua aluna, se adianta: "Não chamei ninguém, aguarde lá fora." Ele apenas sorri e diz: "É um futuro colega." Ela sorri e se desculpa: "É que tem sempre um chato." E derrepente começo a dar razão aos chatos lá de fora.
Entra o primeiro paciente. 39 anos. Parecia 59. Pelo visto era conhecido. Fraqueza. Reclamava da falta de atenção pela equipe de médicos. Os médicos imediatamente retrucaram que o paciente não segue as orientações. Não segue o tratamento. Há quanto tempo não aparecia na fisioterapia? Como ousava ele reclamar de alguma coisa?
Tomei coragem e perguntei por que ele não fazia fisioterapia. A resposta foi imediata: morava a quase 100km dali, não tinha condições de pegar ônibus e nem pagar um tratamento fisioterápico. Será que seu doutor não poderia indicar um médico ou qualquer tipo de tratamento mais perto? A resposta foi imediata: ele que procurasse, "afinal eu não posso resolver tudo".
Na segunda paciente as reclamações se repetiram. Entrou a filha revoltada. Gritava pelo consultório que havia pelo menos 5 anos de tratamento e nenhuma melhora, ainda por cima agora esta insônia. A resposta foi imediata, afinal a paciente se recusava a tomar a medicação. Assim não havia condições de se tratar de ninguém. Rebeldes, estes pacientes. Será que gostam da condição de doentes , por que recusam a ajudar os médicos. Pronto, um resultado foi atingido: a paciente não melhorou, mas a filha agora estava do nosso lado. Coitada de sua mãe.
No quinto paciente enquanto ele (e eu) se emocionava ao dizer seus problemas e dificuldades entra uns orientandos de pós-graduação. Começaram a discutir a data da defesa da tese. Agosto não podia, Junho era muito cedo. Um contou uma piada, todos riram. Afinal não se viam há algum tempo. Eles foram embora. O desagradável, estraga-prazeres, apêndice insistentemente irritante da doença, a que alguns chamam de paciente, ainda estava lá. Seu doutor perguntou: "Onde estávamos mesmo?" O paciente apenas balançou a cabeça, como que dissesse que já tinha dito tudo. Eu me segurei para não dizer: "discutíamos a relação médico-paciente". Mas a consulta já tinha acabado.
Acho que não preciso ficar chovendo no molhado, tentando me lembrar de cada paciente. Voltei para casa deprimido. Alguém tentou me consolar: "quando você se formar o seu discurso vai mudar e você verá que fará uma diferença maior. Você tentou fazer o que pode". Fiquei com medo. Será que o meu discurso não vai mudar tanto quanto eu me formar que ficará igual ao deles?

sábado, maio 07, 2005

Sem novidades no front

Passaram-se uns três meses desde que começou o semestre, e, cheio de experança e vontade de brincar de médico, iniciei este blog. Característica usual de universidades públicas Brasil afora, ainda não começamos o tão esperado encontro com a clínica. O semestre letivo, assim como as outras matérias já começaram, mas como em tudo aquilo que certa classe de seres humanos podem enrolar, só tivemos até agora um encontro com a nossa professora, doravante chamada "preceptora".
Mas não posso dizer que não aprendi nada até agora. Aprendi a tirar a pressão. Admito que tive bastante dificuldade em achar o ponto certo em que pudesse ouvir o pulso do paciente. Cheguei a questionar a minha escolha referente ao futuro profissional. Mas não conseguir tirar a pressão de um paciente talvez não seja motivo suficiente...
Também aprendi que não posso dizer "não sei". Mas eu só sou um aluno, não sou médico ainda, para ser onisciente. Pelo visto, não vou aprender a ser feiticeiro, como sugero o título deste blog, mas Deus...
Achei que tivesse aprendido, até então, que o tratamento deveria ser construído junto com o paciente em um processo de escuta e avaliação onde o conhecimento do paciente deveria ser utilizado para se construir uma lógica de doença e cura e que isto por si só já seria parte da cura.
Mas aprendi que a construção de um efeito placebo deve vir de uma imagem do médico como semi-deus. Especialmente nos serviços de saúde pública de uma grande cidade, afinal é disto que estamos falando: saúde vista como política de massa. Saúde construída sob uma ótica industrial, saúde neo-liberal. É isto que estamos aprendendo, a inserir-se perfeitamente no sistema político que escolhemos (?).
É isto?
Sid

quarta-feira, março 23, 2005

Ainda não começou...

Mas vai começar em breve.
A idéia inicial de criar este blog foi seguir a sugestão de um amigo pára que eu fizesse um diário das minhas experiências clínicas como estudante de medicina. O diário, segundo ele, me ajudaria a "fixar" as experiências permitindo futuras referências auxiliando no estudo, isto além de, ao repassar as experiencias escrevendo-as, me ajudaria a rever o cenário me colocando no lugar dos pacientes aumentando a minha compreensão destes.
As tais experiências clínicas ainda não vieram, mas virão em breve e o blog vai ficar em estado latente até lá (uma ou duas semanas no máximo - sei que existe uma multidão de fãs esperando pelas minhas palavras ...)
Bom... Multidão de fãs, talvez não, mas pode ser que no futuro alguém passe por aqui e leia "estas mal traçadas linhas", por isto escolhi um pseudônimo (ou alguém achou que meu nome é "SIDEREUS NUNCIUS" - o mensageiro do espaço estrelar?) , pois assim posso relaixar quanto ao temor de um eventual deslize da esposição de meus pacientes a notoriedade. Para tal, além do pseudônimo a que serão referidos também, pretendo confundir dados geográficos. O leitor atento (caso haja algum leitor) talvez descubra de que cidade escrevo ou a qual universidade estou filiado devido às particularidades de ambas, mas acho que minha parte estou fazendo... Se não, que me avisem.
Aliás, talvez por isto que escolhi fazer um diário em forma de blog e não trancá-lo em um caderninho escondido como as moças de outrora. Gostaria que os eventuais nevagentes que parassem por esta página tempo suficiente para tal deixassem um comentário, seja na parte clínica ou seja na parte estilística. Aos amantes de nossa lingua materna deixo claro que às vezes busco um vocabulário e um estilo, digamos, alternativo, mas não se iludam: é puro pedantismo mesmo. É inútil lembrar-me disto. E quanto a ortografia, eu apenas peço que aturem meus erros e me perdoem.
Faltou apenas comentar o título "aprendiz de feiticeiro"... Mas acho que talvez seja melhor deixar em aberto. Talvez eu o tenha escolhido por ironia. Talvez pela força da expressão consagrada. Talvez por me ver como um atrapalhado ajudante de sábios doutores, com boa vontade mas sem a verdadeira noção dos limites de meus "poderes". Talvez eu ainda pense que as "artes médicas" ainda possuam algo de feitiçaria... Nem eu mesmo sei. Mas como a minha experiência clínica, como eu disse ainda não começou, espero ter tempo para descobrir...
Sid