sábado, janeiro 20, 2007

Nem toda nudez será castigada

Um sujeitinho irritante. Esta é a melhor definição que eu poderia dar para ele. Chato, desagradável e arrogante. Do tipo que você imagina sendo criado pela avó e duas tias solteiras: jogando bolinha de gude no carpete e soltando pipa no ventilador. Mas me ensinou muito, devo admitir: uma ou outra manobra, cliques e estalidos e muita coisa sobre relação médico-paciente, esta última sempre pelo exemplo do que não fazer.

Especialmente na enfermaria feminina, um sujeito ridículo, expondo desnecessariamente o corpo daquelas senhoras e eu cobrindo por trás. Já nem sentiam mais vergonha, afinal somos médicos (assim elas pensam), mas eu ainda sinto. A nós o poder do jaleco branco e o estetoscópio nos confere a superioridade que esmaga a empatia, a elas desaparece o direito de ser sequer uma parte do que já foram, agora transformadas em meras pacientes-objeto.

E nós entramos como caçadores, exorcistas de um ser mais físico que qualquer um de nós: a doença. Sua eternidade – na nossa cultura médica – compensa de longe a falta de um corpo palpável, pois, afinal, possui um endereço: dona fulana, leito tal. Ah, sim! Humanizou-se a medicina e os hospitais! Chamamos agora pelo nome, de acordo com a boa prática da medicina: “Como é mesmo o nome da senhora? Ah, sei... Uhum...” E no fim das contas, são meras portadoras das doenças, sempre as mesmas... Foi para isto que você estudou tanto? Olha que eu nem me lembro de ter estudado tanto assim... E se afunde em vícios: médico, cura-te a ti mesmo!

Vejo estas senhoras me lembram um pasto ou me lembrariam o selvagem cão de guerra Jet Li? Me lembram meu cachorro. Eu não sei o que o meu cão pensa nem o que um boi pensa. Também não sei o que elas pensam, mas nós nos iludimos em saber. No filme Jet Li é criado como um cão, ninguém pode dizer que isto nunca aconteceu ou quais seriam os sentimentos dele, fingimos, simplesmente, que os animais não têm sentimentos e nós, seres humanos, temos, portanto não merecemos ser tratados assim. Haja dissonância cognitiva para sobreviver (e tentar ter um mínimo de empatia) a um Hospital!

Imagine enfurnado em uma cama, preso em uma jaula de fios e tubos, acorrentado a um soro e torturado por seres de jaleco. Você está preso por você mesmo, você não pode fugir porque não pode admitir: é loucura. É loucura mesmo. Você não quer ser louco, quer?

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Não morrerás

Subíamos a escada após um breve lanche na madrugada, o hospital em relativo silêncio nos permitia escutar nosso cansaço quando a paz relativa do saguão vazia foi interrompida por ele: “toda vez que passo por esta porta, eu desejo que ele morra.” Concordei em um gesto automático, eu sabia de quem ele estava falando.

A vida no hospital nos leva a emoções difíceis de relatar, algumas tão fortes que somos propositalmente esquecemos outras que levamos tempo demais para compreender o seu significado. A que me tomou conta naquele momento foi uma destas. Quem passasse no momento, talvez pensasse que estávamos falando de um estuprador, um assassino ou, quem sabe, até de nosso chefe ou um professor carrasco. Não, nada disto: era de um pai de família que, até onde sabíamos, era tão merecedor de viver quanto qualquer um de nós, uma pessoa boa e querida por seus familiares.

Uma doença pré-existente e um acidente automobilístico o deixaram imóvel, em Estado Vegetativo Persistente (EVP), respostas pífias ao eletroencefalograma porém com reflexos básicos preservados. A face da morte ainda viva.

Talvez alguns estejam esperando mais uma condenação sobre a crueldade médica, talvez estejam pensando que queríamos que ele morresse por preguiça, para puní-lo por ocupar um leito. Em defesa eu posso dizer que o leito não ficaria vazio e se quiséssemos paz e descanso, nada melhor do que um doente em EVP que não perturba, não enche o saco e nem é necessária nova anamnese ou exame – basta mantê-lo com a medicação já prescrita, não dá trabalho nenhum. Se ele morresse em nosso plantão teríamos sim, muitíssimo trabalho extra.

O que pouca gente entende é que somos jogados quase crus às formas mais explícitas de sofrimento humano e, em situações como esta, somos confrontados com a finitude de nossa própria vida. Ficar ao leito de um moribundo é sentir sua essência vital escapando aos poucos, não sei como descrever. Somos humanos e estamos lá, racionalizando a vida como uma máquina ou um tubo de ensaio, como se nossos sentimentos não existissem. De tanto fingir – dizem – eles somem mesmo.

Talvez fosse mais bonito se ele dissesse que queria um milagre, que o doente acordasse do EVP como que tocado por Deus, “levante e ande”. Mas a experiência nos lembra constantemente o quão pouco provável isto é. É melhor que ele morra, saia de nossas vistas e possamos ainda trabalhar na esperança.

Mas sentimentos, esperança, não servem só para atrapalhar o raciocínio?

Mas o raciocínio também incomoda. Pensar e ver esta situação nos mostra que mais do que mortais, somos também incompetentes frente às forças da natureza, nos retira assim o poder que fingimos ter, nós médicos. O que estamos fazendo ali, a não ser atrapalhando que a vida siga o seu curso? Somos como sacerdotes frustrados (e frustrantes) de uma nova moral, onde não só matar é pecado, como morrer também é.

Sid