domingo, novembro 26, 2006

No Ceará não tem disto não.

Acho que nunca vai sair da minha memória, pelo menos assim espero, a imagem dela cantando Luiz Gonsaga. “Este tal de câncer...”, disse ela, “... vou me embora para a minha terra... lá não tem disto não...”

Na faculdade nos ensinam que os pacientes criam uma relação de dependência que às vezes torna difícil livrarmo-nos deles, o tal “desmame”. Não tenho visto isto. É duro admitir que é bem mais difícil para mim, vou sentir falta dela, de nossas conversas, do choro que nunca vi.

O choro que nunca vi. Um dia sua filha veio me dizer que estava preocupada com a depressão dela. Depressão? Sua mãe acabou de descobrir que tem câncer e você queria que ela estivesse sorrindo e cantando? Nunca vi uma mulher tão forte.

Foi pensando nisto que fui me despedir dela, como sempre agradeci com um sorriso o fato dela ter me ensinado a ouvir os tais dos “estertores crepitantes”, minha primeira paciente de pneumo. Ele estava linda, toda maquiada exibindo a foto do último neto à toda enfermaria, falava sem parar e repetia com orgulho a notícia da alta.

Consegui, com dificuldade, um segundo de exclusividade em sua atenção para perguntar o que ela iria fazer depois da alta. A resposta não poderia ser mais óbvia: “Vou voltar para a minha terra”. Mas como? E o resto do tratamento?

“Meu filho, a primeira coisa que aprendi nesta vida é que vou morrer. Vocês médicos querem nos enganar, fingindo que vamos viver para sempre... Ah! Mas a mim vocês não enrolam não! Eu vou é voltar para o meu Ceará! Vou morrer lá! Já fiz o que tinha que fazer, já criei minhas filhas e já vi os meus netos, já não sirvo mais para nada, só para morrer mesmo.”

Eu fiquei pasmo. Não esperava esta resposta. Cadê o medo da morte? Como alguém consegue dizer que “não serve mais para nada” com um sorriso no rosto? Tenho ainda muito que aprender por aqui, quando ela completou: “esta vida não tem significado nenhum, a não ser o que a gente dá para ela. Tudo acaba, tudo não é nada não. A gente pode ficar chorando pelo canto ou arrumar um jeitinho de ser feliz. Eu vou é voltar para minha terra e ir feliz...”

Quanto a mim, eu vou ficar aqui, pensei. Sempre andando pela enfermaria por entre sofrimentos, o coração apertado como uma criança perdida, sem entender, sem agir. Queria ser como ela. Mas ela me ensinou mais do que estertores crepitantes, me deixou com a impressão que a maioria dos problemas de nossa vida não valem a preocupação e que existe apenas um fio tênue de verdade que liga o que eles aparentam ser daquilo que realmente são, no final das contas, a pior coisa que poderia nos acontecer, a morte, é natural e inadiável.Vou sentir a sua falta.

Sid

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