sexta-feira, agosto 18, 2006

Game Over

Vim dirigindo confuso. Não foi fuga, apenas consegui o que queria: até que enfim um morto. Não tinha mais nada para fazer no hospital. Enquanto não for por obrigação, eu mesmo faço o meu horário. Em casa, a mente teimava em desobedecer o corpo cansado e e lutava contra sentimentos que insistiam em buscar espaço. Tive que levantar e escrever.
Ele deu entrada no centro cirúrgico agora já fazem mais de 12 horas. Dor abdominal profunda. Diagnóstico óbvio: apendicite, assim trouxe o SAMU. Na emergência enviaram para uma cirurgia exploratória, que de tanto explorar encontrou o que não queria, nem sequer imaginava: um aneurisma de aorta. Roto.
Isto muda tudo: prótese, plaquetas, correria. Daí para frente, como que se ele decidisse me dar uma lição (como sou egocêntrico), segue-se a sequencia interminável de notícias ruins, do hematócrito que chegou a 13 à saturação que chegou 40%. A primeira parada e a mão do cirurgião vai direto ao coração, como em um poema mal feito, insistindo em uma rima sem nexo, de tanto apanhar o coração parecia desistir de bater.
Cedo demais para sair da sala, uma nova parada na porta do CTI. O intensivista fez menção de subir em cima, e o cirurgião quis abrir de novo. Mas nada, nada foi feito. Nada podia ser feito, todos sabiam disto.
Ele me olhava, esperendo que o branco dos meus olhos ficasse vermelho, percebi um prazer sarcástico nele, que foi-se, pois só agora mudaram de cor, vencidos pelo cansaço. Por um momento ele esqueceu que perdera o paciente, pelo menos alguma dor eu consegui aliviar. Eu que tanto tenho criticado os médicos, desta vez eu não posso deixar este meu último comentário ser mal interpretado: ele fez de tudo para salvar aquela vida, mas preocupava-se agora com as próximas vidas: as que viriam em minha mão, seu discípulo, pelo menos por uma noite.
Todos fizeram de tudo para salvá-lo. E quando ele morreu, eu não posso dizer o que sentiram, apenas o que eu senti. Como na visão de um de meus críticos, a vida, pelo menos a que está em cima da mesa, diz-ele, para mim não passa de um joguete. Talvez. Talvez eu racionalize a vida para evitar enfrentar a morte. Talvez sejamos doutrinados a isto. Hematócrito, saturação, pH, pressão, frequência... Números. Mas na mesa está alguém igual a mim, igual ao que eu fui, sou ou serei. Com pessoas iguais as que me amam esperando lá fora.
E nós jogando. Aumentando isto para diminuir aquilo. Desta vez perdemos o jogo. Esta foi a sensação que eu tive primeiro. Agora eu não sei mais. Por mais que eu deteste admitir, meu crítico está certo.
Mas aqui, neste centro cirúrgico, o que importa não é salvar vidas? Amenizar o sofrimento, paliative care, isto é para depois, se ele sobreviver à mesa.
Sid

quinta-feira, agosto 17, 2006

Assassinos

"Não sou melhor que ninguém. Sei que não posso julgar ninguém. In dubio pro societa. Apenas envio-os para uma instância superior que saberá julgá-los: Deus"
Doutor de terno e gravata. Suprime a necessidade de outros dois poderes: legisla em causa própria, julga como Deus e executa. "Apenas faço o meu trabalho, não vê?" Não vi nada mais que carne humana sobre ossos de hipocrisia. Esta minha mania de dar idéia aos pacientes, ainda pode me matar.
No quiosque, fora do hospital, às 2:25 ele falava de bandidos. Professor de epidemiologia ele sabia do que estava falando, afirmava sem titubear que não havia nada melhor que o tráfico para a saúde pública: mata jovens que não apresentam ainda as cronicidades da vida e mata em alta velocidade, não sobrecarregando o sistema. Queria apenas falar da frieza da medicina quando se pensa em números. Criticam a ideologia por trás de usar a verba da Saúde para a Bolsa Família, mas poucos têm a coragem de criticar crueldade de se gastar com alta complexidade em um país que ainda se morre da doença mais curável do mundo: a fome.
Queríamos discutir política, queria ter a oportunidade de dizer que a vaidade científica e o orgulho técnico influenciava mais as decisões do Ministério da Saúde do que a busca pela justiça social. Mas a acadêmica queria ouvir histórias de heróis, fardados ou não, defendendo donselas. Eu também um dia quis heróis críticos e conscientes, quis fazer estas histórias, mas eu só vi assassinos. Tão cruéis quanto os que sustentam palácios de "excelência médica", delírios milionários da Bélgica dos sonhos em plena Bangladesh em guerra civil.
Um destes assassinos, no entanto, eu até aprendi a admirar: com orgulho de ter construído tal admiração com o sacrifício de meu próprio corpo. Pai zeloso que me entregou seu próprio filho com a recomendação: "Mostre a ele o inferno". Este é um ser superior, que cumpriu tudo aquilo que pregou, que construi valores acima do reino de hipocrisia, que lutou por tudo que acreditou, que foi libertário quando era para ser carrasco, que foi assassino quando era para ser medroso. Que de Deus só quis aquilo que ninguém Lhe pede, e recebeu a sua parte para sempre: ódio e medo de fora da caserna e desprezo de quem lhe deu a reserva; a luta e a tormenta.
Eu vi tal super-homem chorar duas vezes: a primeira quando eu perguntei "porque?", a segunda quando leu o título do meu presente: "Além do Bem e do Mal". O único comentário que fez até hoje, foi perguntar-me se o livro foi escrito há muito tempo...
Ainda tentei mais um vez: sedento de sangue, atormentado pela doença, e além do bem e do mal, eu lhe dei "Ecce Homo". Apenas para ouvir que "este tal de Nietzsche era um herege", como se matar não fosse pecado.
Mas daí eu tirei uma grande lição: pecado não é ir contra a "lei", mas criticá-la. Herege é aquele que ousa. Que desvenda a capa de ilusão que abre os olhos e vê. É preciso ser forte e bravo. Não inveje a coragem daqueles que matam, pois você não sabe a sua atitude quando não tiver outra coisa a fazer. Não é coragem fazer o que esperam que você faça.
A capa da "lei" é forte demais para ser vencida por qualquer um: é contruída sobre dor. Na faculdade viramos noite, sofremos com os professores, estudamos e decoramos sob o nome de "aprender". Como recompensa ganhamos migalhas de notas suficientes. Isto tem que ser importante! Assim é contruída a "lei", aquele que disse que isto não é importante, não é o certo, não é assim é um herege cujo destino é a fogueira, a Santa Inquisição.
No quartel, as coisas são menos sutis, mas eles te dizem o que vão fazer, como será e porque. Dão luz aqueles que podem ver, mas quase ninguém pode. Só não chamam de "dissonância cognitiva" porque militar é tudo burro, tem um nome menos pomposo: "síndrome de Estocolmo": é o que você deve fazer com o seu prisioneiro de guerra.
Quando meu pai quis que eu virasse "homem", me levou para onde os homens estão. Aos quinze anos de idade eu não pude compreender mas entendi o olhar do prisioneiro que me dizia ser mais livre que o "filho do doutor", pois era livre da sociedade que ainda me oprime, tanto tempo depois, chocava a hipocrisia reinante admitindo em tatuagem no braço: "mato porque gosto".
Coisa que o sargento do Batalhão da Caatinga não teve coragem de admitir, enquanto me mostrava toda a tecnologia do sertão: fuzil M-16 com mira telescópica, óculos de visão noturna e a caçamba do 4x4. Falava com orgulho de quem reproduz uma antiga história: "Quando o seu dotô governador pediu ao coronel que prendesse os bandidos e acabasse com os assaltos por cá do São Francisco, seu coroné foi Macho: 'Ou eu prendo os bandidos, ou eu acabo com os assaltos'"
Os urubus que sobrevoam a estrada entre Cabrobó e Nova Floresta, entretanto, sinalizam os corpos largados à beira da estrada, mas esquecem de dizer que nem ninguém foi preso nem se acabaram os assaltos. Mas a velha ordem das coisas se manteve e isto, afinal, é o que importa.
Mas para cá do rio, em Euclides da Cunha, o outro lado da guerra, o lado que sempre sofreu, não teve a mesma sorte dos Macacos High-Tech: "Eu conheci para mais de 20 irmãos meus, enterrei eu mesmo quinze. Perdi uns cinco de doença, os outro foi na ponta da faca. Eu nunca vi polícia aqui no sertão brabo. Homem que não mata aqui, morre". Reclamava, lamentando a única vez que viu a polícia: levaram sua namorada de 15 anos, que tinha matado a pedradas a ex-esposa. Me mostrando que o valor de nossas certezas pode mudar conforme a geografia.
Estas são as grades que nos prendem: o valor que damos as coisas, pelo simples fato de termos sofrido para conseguirmos.
Quando eu entrei para vê-lo, escutei o seu guardião reclamar de tédio. Na custódia não se bate em ninguém, não se mata ninguém. Eu vi o medo em seu olhar, disfarçado de ódio à medicina, como se a morte fosse, necessariamente, erro médico. Longe do fuzil fálico que sempre representou a sua vontade de poder, enfrentava agora o vazio. E hoje já não desejo mais o medo do assassino, mas a coragem do suicida. É nesta coragem que espero liderar meus pacientes.
Sid

domingo, agosto 13, 2006

O dragão de Poliana

Fechei os olhos e vi o dragão de Poliana. Imaginei como seria e por onde andava. Solto a cabeça e sinto o seu fogo. O que me liga a ela, me lembra mais tatuagens. No peito escrito "GOTHIC", mais abaixo, sangue. Também havia dragões, mas não o dela. Tinha uma facada no flanco direito. Entrou preocupado no centro cirurgico. Tinha que fazer uma ligação, talvez fosse para avisar a Poliana que tinha sido ferido em uma briga. Eu dei meu celular sem cartão, mas não podia ser a cobrar. Uma pena. O anestesista percebeu o diálogo e riu com um carinho que provavelmente o moicano não via há muito tempo e disse: "Você agora tem outras coisas para se preocupar... Relaxe... Daqui a pouco você vai dormir." Obediente, ele fechou os olhos.
Entra o senhor doutor cirurgião. Rindo e comprimentando a todos. Olha para os residentes e diz em tom obviamente irônico: "Não me venham com perguntas imbecis, eu odeio estudante, já nasci staff." Tenho que admitir que teve paciência em todas as perguntas que foram feitas.
Ao olhar o paciente, enquando a enfermeira retirava os brincos e piercings (com bisturi elétrico não se brinca), viu as tatuagens, o corpo sarado nu e exposto, deixou transparecer uma contra-transferência inconveniente para o momento: "Um sujeito desces que se fura todo, só pode ser vontade de dar o cu."
Teoria interessante. A primeira coisa que me veio a cabeça foi esperar o sujeito melhorar e ir se oferecer gentilmente ao cirurgião para colaborar em pesquisas que relacionassem metal perfurando a pele com tendências homossexuais. Mas não vou mudar o mundo, é melhor deixar para lá. Homossexual ou não, afinal de conta, isto não era algo para ser discutido na cirurgia, até porque não faria a menor diferença.
Mas reflete nitidamente o que aprendemos: o paciente é um pedaço de carne, um modelo para nossas teorias, um apêndice desagradável da doença. Poliana me disse que no hospital é onde nascem, adoecem, tratam-se e morrem os valores morais de nossa alma. Ela me diz tanta coisa, me disse também para ler Foucault, já tinham me dito antes, mas nela eu acredito.
Ele ainda insistia: disse que odiava parto natural. Nada mais desagradável do que ficar convencendo estas desesperadas a parir, "faz força de cocô, mãe", isto é coisa que um médico diga? Claro que não, ele tem que poupar saliva para chamar os outros de viado. A cesariana é muito melhor: o cirurgião chega, a mãe está apagada, vai, corta, e entrega "aquela porra estridente" para o pediatra. Lava as mãos e vai embora.
Eu já tinha visto uma cesária. Quando o meu amigo me perguntou, eu disse que senti nojo. Não dos fluidos corporais, mas justo da assepsia. Tudo muito quieto e muito limpo. Não é como na ambulância da FUNASA, quando me senti "médico" pela primeira vez. 3h da manhã e a índia gritava, disse o motorista, só estamos nós dois, é contigo, doutor... Ele já tinha feito vários partos, eu, nenhum. Ficou o tempo todo do meu lado, me ajudando e dizendo o que fazer, sem a arrogância do staff. Retribuí o favor ajudando a lavar a Toyota...
Voltava a mim e via todos concordando com o doutor, enquanto ele buscava mais lesões no paciente. Técnica e responsabilidade ele tinha. É um ótimo cirurgião. Agora eu me lembro o verso de Nietzsche: "A seis pés acima da terra, à aurora, e abaixo de mim: o mundo, os homens e a morte." O cirurgião estava realmente acima de tudo, acima inclusive da moral que morrera ali mesmo naquele hospital.
Ética e moral. São diferentes. Moral é a ética escrita, ética é a teoria e cultura que determina. O problema destrinchado em sua essência é de ética. A moral dele está de acordo com a ética que se espera de sua posição, se minha ética não está de acordo, problema meu, o errado sou eu.
Pela minha cabeça passam os comentários sobre meus sentimentos no Blog, vejo que sou, assim como ela, um correspondente de guerra. Talvez escute as baterias anti-aéreas que sempre quis. Me vejo tocaiado, em território inimigo, selvagem cão de guerra em ação de comandos lançado na selva com a faca afiada e uma pedra de amolar, me vejo aguardando para matar aquilo que estou prestes a me tornar. Serei esfolado vivo. O progresso, Mársias, não pode ser detido. Fui delatado, me encontraram. Charlie-charlie, o campo de concentração, sem a menor esperança da Rede de Apoio à Fuga e Evasão...
Quando a moral e confrontada, agoniza e morre, resurge das cinzas uma nova ética que alivia a dor da imoralidade. Ética médica, máfia de branco, eu vou lutar até o final.
Sid

sexta-feira, agosto 11, 2006

Virtudes Públicas, Vícios Privados

Já se faz quase um ano que tenho o Blog. Nesta longa existência muito pouca gente entrou nele. Resolvi então divulgá-lo. Não sei se foi por vaidade, acho que foi, mas pode ter sido também para me testar, para ver se estou conseguindo passar para as pessoas o que eu sinto. Ter um feedback.
Alguns comentários me chamaram muito a atenção. Bom, os elogiosos a gente agradece mas esquece. Mas as críticas são fundamentais.
Eu percebi especialmente que falar mal de si mesmo não é sinal de virtude, como eu esperava, confessar fraquezas e incapacidades, mediocridades e egoísmos, é um pecado maior que tê-los. Se no meu Blog eu ficasse falando mal de tudo e todos e dizendo o tempo todo que senti compaixão e pena, eu seria um santo. Eu não quero isto: eu quer ser humano, mesmo que demasiadamente humano para ser compreendido.
Eu quero ter a liberdade de gritar meus preconceitos, falhas, medos e incapacidades!
Não quero rebater a minha crítica como alguém ofendido. Teria toda a liberdade para dizer-me vaidoso e magoado. Mas não é o caso. Estou realmente agradecido. Pois me mostraram uma coisa interessante, que eu não tinha percebido.
Fosse o meu Blog dedicado a literatura, eu estaria indo por um caminho totalmente errado: vícios privados chocam as pessoas. Mesmo quando se demonstra que eles incomodam a quem os tem o suficiente para tentar excomungá-los em um Blog, escrevendo.
Virtudes públicas fazem mais sucesso. Realmente, eu juro, imaginei o contrário.
Poderia dizer que o interesse do meu Blog não é literatura, mas exatamente excomungar os meus defeitos. Mas talvez realmente a crítica seja bem-vinda. Não me escondo a possibilidade de um dia querer abraçar uma maior quantidade de leitores, tenho que, portanto, ficar atento ao desejos, medos e vontades deles. Assim como dos meus pacientes. Não seria isto, portanto, um bom exercício?
Sid

quinta-feira, agosto 10, 2006

A inteligência no abismo

Escutei duas senhoras conversando no ônibus: aparentemente alguém teria recusado um filho com síndrome de Down, alegando que seria um "estorvo". Aparentemente uma médica teria dado um discurso "lindo" sobre a vida e sobre a importância de aceitar-se um presente de Deus, seja o que for. Isto parece fácil demais com a vida dos outros. Mas é certo que as pessoas precisam aprender a assumir responsabilidades, mas cabe à equipe de saúde auxiliar neste caminho, compreendendo o quanto é difícil, às vezes por razões mais práticas que emocionais: falta de dinheiro e tempo, real.
Mas isto é óbvio demais para ser comentado aqui.
Eu fiquei pensando na minha atitude. Em todas as crianças excepcionais que eu vi. Fiquei pensando o quanto eu odeio crianças. Acho lindo o bebê rosadinho no colo da mãe ou um pequeno ser aprendendo a correr. Nada mais bonito que um sorriso inocente.
Mas o choro faz a minha alma doer de uma forma que eu não consigo controlar, ou sequer entender. O sofrimento infantil me faz perder qualquer resquício de racionalidade. Isto simplesmente não pode acontecer. Odeio crianças. Mais ainda as excepcionais.
Mas mesmo assim eu me vi, Médico de Família e Comunidade me deparando com o problema. Abraçando um excepcional e chamando de "meu amigo". Pura hipocrisia. Não, não posso ser hipócrita. Tenho que ser sincero em meus sentimentos. Este é o meu conflito.
Enquanto eu vejo o abismo eu temo aquilo em que posso me transformar: frio, calculista, cruel, hipócrita - médico. Mas talvez haja uma opção que não seja absorver o abismo, nem desistir de enfrentá-lo: é jogar-se nele. Encarar o sofrimento humano com a coragem que um suicída encara a morte.
Talvez se eu compreendesse o que torna alguém "meu amigo" eu poderia ser menos hipócrita. Talvez eu também compreendesse que não é o processo que me fará médico que me tornará hipócrita e calculista, talvez eu visse assustado que eu sempre fui assim. Só arrumei uma justificativa para deixar isto transparecer.
Gostaria de recuperar a referência, mas foi-se. Eu li um comentário que dizia que desprezar os textes de QI era como jogar o bebê junto com a água que o lavou (uma expressão que os americanos adoram). O problema não é o texto, não é fazê-lo, não é considerá-lo importante e não é nem o fato de usá-lo como uma determinação objetiva da inteligência. O problema é o valor que damos subjetivamente a inteligência. A nossa dificuldade de definí-la e compreendê-la (argumenta) vêm do fato que a consideramos um padrão-ouro do valor do ser-humano. E não simplesmente uma característica própria do indivíduo, como o é a beleza, a honestidade e a coragem.
A inteligência pode ter vantagens para um candidato a amigo. Um discurso interessante e idéias novas que nos fazem pensar podem ser divertidas. Mas a beleza de um comentário inocente também. Se eu procurar o que deve ser importante nas pessoas encontrarei onde eu menos esperaria. Durante este processo que ainda vai durar alguns poucos anos, espero mudar a ponto de ser sincero em meus sentimentos com o feio, o sujo, o pobre e o burro.
O amor me fará aliviar o seu sentimento.
Sid

terça-feira, agosto 08, 2006

De que lado você samba?

Eu vi a viatura da Polícia Civil chegando junto comigo pela emergência. Deixaram o colega e foram. Um comportamento que me chamou a atenção. Parece que também chamou a atenção de uns soldados PMs que estavam aguardando notícia do companheiro ferido. Nem se interessaram muito e dar detalhes. Largaram o cara e foram. Deve ser bandido e não colega, pensei.
Subi ao centro cirurgico e enquanto eu me fantasiava de abacate entrou o anestesista e disse: temos um baleado: policial civil, dois tiros no peito. É... Se fosse vagabundo não chegaria vivo ao hospital. Não dei muita bola à primeira impressão... Fomos conversando amenidades até a sala.
Chegou o tal sujeito na sala. Havia um dreno saindo do pulmão e não parava de colher sangue. Já era a segunda bolsa. O anestesista perguntou as coisas de sempre: horário da última refeição, se ele era alérgico a alguma coisa, se ele já tinha feito alguma cirurgia antes e se ele havia se drogado. Respondeu não com a cabeça a todas as questões, mas na última arregalou os olhos.
Cocaína? Depois de alguns segundos imóvel fez que sim, timidamente, com a cabeça. Isto explicava muita coisa. Estava fazendo merda, foi reconhecido e ainda deu trabalho para a equipe de plantão. Não me admira que tenham largado ele lá e ido embora.
Cocaína é uma merda mesmo. A anestesia simplesmente não pegava. Enquanto isto a equipe corria com as bolsas. "Vai acabar o sangue do hospital", disse a cirurgiã staff. "Não vai não", me disse o anestesista baixo: "tiro de fuzil, é muita energia no impacto, quando perfura já está resolvida a lesão"
"Vai, entuba". Me disse o anestesista já me dando o laringoscópio, com a maior calma do mundo. "Eu nunca fiz isto antes". Era a minha chance de aprender. Acho que ninguém estava realmente preocupado com ele... Muito menos eu.
"O que vamos fazer?", "Ele vai acabar com o sangue do hospital..", discutiam os cirurgiões: dois staffs e uns três residentes, não lembro bem. O anestesista calmamente disse em tom irônico, era finalmente a sua vingança: "calma, vejam isto:" Pressão positiva no respirador e o pulmão colapsado se inflou. Tapou os furos de bala, ele parou de sangrar enquanto a equipe olhava atônita.
Diminui a pressão. Retirou o tubo. Mas nada dele voltar. Deu uns tapas na cara, provocou dor. Nada. Cocaína realmente é uma merda. Disse para a enfermeira: "Monitora ele que eu vou jantar", "Você vem comigo?", me perguntou. Afinal, quem se importa?
Saíndo, a vingança não poderia ser mais completa: "O que eu ponho na ficha?" Perguntou a residente em cirurgia. Afinal, tinha mobilizado a equipe, a sala e material. Precisava justificar alguma coisa. O anestesista nem olhou para trás, apenas disse com desdém: "Escreve qualquer coisa..."
Acho que esta futura cirurgiã, por incrível que pareça, viu que tem um colega em quem confiar na sala.
Sid

segunda-feira, agosto 07, 2006

A bruma das provas

Cada vez que faço uma prova, penso em abandonar a medicina.
Não me aceito tão dislexico. Eu acho que estudo tanto... Não sei se mais nem menos que ninguém, mas o meu dia só tem 24h. Porque as minhas notas estão sempre entre as piores?
Enquanto eu procurava razões neuro-quimico-anatômicas que pelo menos me fizessem me sentir melhor, achei um comentário sobre um filme chamado "Fog of War". Parece que sobre a história de um general americano.
Parece que em algum momento alguém comentava que era impossível dominar, nem ao menos conhecer, todas as variáveis da guerra. Taí uma coisa que fez me sentir melhor, mesmo que não valesse como argumento para me tirar das infindáveis provas-finais...
A consciência do fato de eu não consigo acumular o conhecimento de forma explícita dói menos quando justificamos pela impossibilidade estatística de se avaliar todas as variações possíveis. Não importa o que Damásio diga, não me interesse os seus "marcadores-somáticos", eu prefiro a confiança serena na psicossomática do que a arrogância dos cirurgiões.
Morreremos todos, um dia. Que pelo menos morramos felizes.
Sid

sábado, agosto 05, 2006

Deus

"O médico é como Deus"
Andava de ônibus quando escutei isto.
E depois querem nos cobrar humildade...
Sid

Sombra e a escuridão

- Só vemos as sombras. Não há como mudar isto.
Concordei com a cabeça. Sem ao menos prestar atenção. Eu falava mal da administração do hospital e ele queria conversar. Agora já não pode mais falar nada.
Hoje, segundo uma enfermeira, ele tinha acordado assustado: já não via mais nada. Das sombras, agora só lhe restava a escuridão, nem mais a escuridão que não viu pela manhã.
Eu sempre quiz saber qual o trajeto que os corpos dos pacientes mortos faziam pelo hospital, por onde passavam e para onde iam, mas ia ficar para a próxima vez. Não porque estava envolvido demais emocionalmente, mas porque me incomodava mais não estar. Acho que estou pronto para ser um médico.
Sedento por experiências, por algo o que escrever aqui, eu me vasculhava em torno de emoções. Nada. Por mais que eu forçasse era como uma peça de anatomia, era simplesmente "algo" no leito. Uma sombra que se ia. "Não sangra, não suja a mesa. Esta é a grande vantagem do cadáver." Não saia da minha cabeça as palavras do professor.
Às sombras que percebíamos da vida, tentava dar cor e relevo para as dele. De quando eu o vi pela primeira vez: mais um paciente, mais uma alma inferior. Agora eu queria valorizar, tarde demais. Ele fora muito mais inteligente que eu. Aproveitou a oportunidade enquanto eu, mais esperto, não tive a capacidade de aprender com ele o tanto que ele aprendeu comigo: como fala besteira um estudante.
Gostaria de escrever mais. Mas não tenho mais o que dizer.
Sid