segunda-feira, setembro 05, 2005

Amor de mãe

Férias.
Resolvi fazer um estágio com Médico de Família.
Mas primeiro foi preciso chegar lá.
Cheguei tarde em uma cidade no caminho. Vim de carona em um caminhão de boi. Arrumei uma pousada para ficar, mas estava sem sono. resolvi dar uma volta.
Na cidade só tinha um lugar onde me serviriam algo àquela hora: lá nas primas.
Tão logo cheguei na casa delas começou a chover, e com a chuva veio o frio.
Sentei e pedi uma cerveja. Ganhei grátis uma compania. Me disse que seu nome era Dayse. Tinha um casaco grosso e resolveu me abraçar. Por que não, estava frio mesmo.
Conversamos sobre tudo: já tinha sido casada, mas largou o marido, casou sem gostar dele, para fugir de casa, em outra cidade. Disse também que lá na cidade só havia uma profissão que ganhava mais que puta: eles pagavam R$ 5.000,00 para lavar e arrumar defunto no cimetério da cidade, mas ela tinha medo. Até hoje não sei se acredito.
No pequeno e apertado bar além de nós ainda tinha mais 4 meninas e uma senhora, a dona, acho. Uma das meninas parecia ser bem nova, mas não me arrisquei a perguntar a idade, também não sei se acreditaria na resposta. Além do que, hipocrisias à parte, certamente tirar ela de lá não resolveria nada para ninguém.
Ainda tinha dois bêbados e um outro rapaz. Este só olhava. Não expressava nenhuma emoção. Durante todo o tempo que fiquei lá não disse uma palavra ou manifestou qualquer reação. Segurança? Cafetão? Gigolô? Não perguntei também... A aparente calma do lugar escondia certamente a verve violenta de quem é acostumado a trabalhar duro para conseguir o pouco que tem. Manchas de sangue na parede e no chão, me lembravam isto.
"Tinta vermelha" disse minha amiga tentando mudar de assunto. Não era. Não havia um canto sequer pintado de vermelho. Não perguntei mais. O bêbado mais chato riu e disse que lá eles costumavam a sortear "um Escort", ou foi isto que eu entendi. A piada não agradou e eu entendi o que eles sorteavam eram "uns cortes".
Este era chato mesmo. Toda hora tomava um esporro. Oferecia valores bem acima da miédia para o programa R$ 50,00, ela disse que em geral fazia por R$ 15,00. Mas elas recusavam e xingavam ele. Ele exibia a nota, mas não adiantava. Parecia que a brincadeira divertia ambos os lados...
Já o outro, a minha amiga disse que tinha pena dele. Não saía de lá desde que a esposa o abandonou, e ela o abandonou justamente porque ele vivia bêbado. Algo tinha que ser feito, pensei. A vida é dura demais para se viver, acho que uma das funções do médico é ajudar as pessoas a ficarem neste planeta.
Pensava sobre isto quando chegou um monza "tubarão", com aspecto de novo, bem cuidado. Dele desceu uma senhora que entrou no bar sem olhar para os seus frequentadores e foi direto na moça mais velha.
Perguntou quanto o rapaz devia, pagou, pediu que tratassem ele bem - como vinham fazendo até então - agradeceu por tudo e disse que se responsabilizaria por qualquer despesa dele.
"É duro ser mãe" disse ela. "A sua mãe se preocupa muito contigo?", me perguntou. Eu ri, e disse que a tinha feito sofrer muito, mas que achava que ela agora tinha um certo orgulho de mim. Aí eu perguntei "e a sua?", tão logo eu disse isto, antes de esperar pela resposta eu já estava arrependido. Ela simplesmente disse: "muito..."
Enquanto isto, levaram o garoto lá para dentro e lá ele deitou um pouco. Continuei conversando com as meninas. A maioria nada falava. Só a minha amiga que comentava sobre tudo: política, a cidade, tudo...
Perguntou o que eu fazia. Se eu dissesse "estudante de medicina" certamente ela criaria um falsa impressão da minha disponibilidade financeira, daí eu disse "enfermeiro". Quiz saber o que eu fazia, como, onde e porque... Inventei estórias fantasiosas sobre resgate e emergência.
Fomos interrompidos por um grande barulho vindo lá de dentro. O tal rapaz havia caído. Ela sugeriu que eu fosse dar uma olhada.
Entrei pela primeira vez em um quarto de bordel. Não posse negar que fiquei impressionado. Fora o sangue nas paredes e no chão com o qual eu já havia me acostumado eu fiquei surpreso com as camas espalhadas separadas por panos velhos e rasgados.
Ainda tinha mais uma menina que eu não tinha visto, estava atendendo um cliente, o som alto do bar não tinha deixado eu perceber, mas agora eu via e ouvia, por entre os panos. Eu imaginei quando duas ou mais camas estivessem ocupadas... Deve ser difícil se concentrar assim.
Passei por cima de engradados de cerveja pelo chão e cheguei até a cama onde ele estava. Deitado perto de um armário com a porta quebrada, onde havia um urso de pelúcia rosa e vidros de perfume. Na parede fotos de artistas da TV. O lugar fedia a suor, mofo, poeira e perfume.
Cheguei perto dele, olhei seu rosto inchado e vi um grande hematoma acima do olho, manchas de "sangue pisado" iam desde a têmpora até a fronte, além disto ele tinha um pequeno corte um pouco acima do nariz, de onde escorria algum sangue. Pedi uma gaze e fiz um rápido curativo. Quanto ao hematoma eu sugeri um Rx. Sua amiga disse que era de uma queda anterior e que ele já havia tirado uma chapa. Estava tudo bem, disse ela.
"O que você vai fazer por mim?" ele me perguntou enquanto eu fazia o curativo. Pensei na função do médico de aliviar o sofrimento. Pensei em antidepressivos, psicoterapia, CAPS... Eu sabia que algo precisa ser feito. Sabia também que podia ser feito. Pensei no que eu poderia fazer. "NADA", disse. "Só quem pode fazer alguma coisa por você é você mesmo"
Acho que fiz o melhor que eu poderia. Pelo menos o olhar de aprovação da moça que estava cuidando dele me animou. A vida é dura e o mundo é cruel, preciso sempre me lembrar disto.
Sid