segunda-feira, março 10, 2008

Difícil

O professor me mandou ir chamar a próxima paciente, foi quando a vi pela primeira vez. Os olhos angustiados sobre mim me chamaram a atenção, o que me fez pensar que seria ela a próxima paciente. Tinha o nome nas mãos e perguntei a ela, não, não era ela, mas aproveitou para reclamar do atraso. Tentei confortá-la dizendo que não nos limitávamos ao tempo que o gestor disponibilizava para nós, íamos além, mesmo que perdendo dinheiro, era o nosso dever. Por isto alguns pacientes eram atendidos com atraso. A voz doce respondeu que não havia problemas, pois estava muito doente. Deste breve contato não pude jamais supor o desfeixo que teria poucos minutos depois.
Finalmente, chegou a vez dela.
Entrou nervosa no consultório e foi logo expondo a hipótese diagnóstica, mesmo antes da queixa principal. Percebi pela atitude raramente cordial do professor que ele estava farejando problemas. Tentávamos fazer a anamnese da paciente, mas ela queria ir logo aos finalmentes: a doença dela era tão grave que não poderia esperar nem mais um segundo, seja ela qual fosse. Afinal ela tinha lido tudo sobre os sintomas na internet e agora queria uma dosagem de todos os hormônios. TODOS? Perguntou o professor. Sim, todos. Foi o que ela leu na internet.
Olha, tentamos explicar, vamos antes excluir as causas mais simples? Deixa eu fazer um exame físico, colher a sua história e avaliar se precisamos algo mais simples. Mas ela queria que jurássemos que iriamos pedir TODOS os hormônios, não importa o quanto isto onerasse desnecessariamente o sistema. Desconversamos e conseguimos fazer alguma coisa, não sem antes perceber o seu sintoma mais marcante: estresse e ansiedade.
Algumas respostas eram evasivas, outras marcadas pelo uso de termos desnecessariamente técnicos, se queria nos impressionar, conseguiu fazer que duvidássemos do que dizia. O exame não revelou grandes coisas, a anamnese era pobre e ficou claro que precisávamos excluir outras causas. No final da consulta pedimos um Rx simples, uma US e um hemograma. O que se viu depois foi uma rápida explosão de nervosismo, angústia e raiva. Afinal ela sabia o que tinha e o que precisava, nós não. Tínhamos perdido um precioso tempo de nossa vida estudando e o professor, há muito sem paciência, sugeriu que a internet a tratasse, já que não confiava em sua experiência. Disse que iria arrumar um médico "decente", mas antes disso iria à ouvidoria do hospital.
Ela saiu, eu ainda pensei se não devíamos ter feito o jogo dela. Talvez não tivéssemos perdido a paciente, talvez tivéssemos criado um vínculo que depois poderíamos ter evoluído para a medicina verdadeira antes de nos perdermos em elocubrações internéticas, afinal, no caso de um tumor secretante todo aquele nervosismo, aquela raiva, poderiam se sintomas importantes. O professor respondeu que talvez, mas também todos aqueles sintomas poderiam ser causados pelo estresse. Paradigma do qual acho que jamais sairemos. Certamente seria melhor nos concentrarmos naqueles que queriam ser tratados, ou que aceitassem o nosso tratamento, ou, no mínimo que quisessem negociar.
O médico muitas vezes é exposto ao paciente que quer um determinado tratamento, uma determinada droga ou exame. Cirurgia bariátrica: quantas vezes na primeira consulta o paciente não chega logo pedindo a cirurgia, como se isto fosse resolver alguma coisa em sua vida. Às vezes pedem drogas tóxicas como a prednisona, inibidores de apetite ou mesmo psicotrópicos. Pior ainda quando saem dizendo à comunidade que você é um péssimo médico que nào aprendeu que estas drogas existem como os seus colegas. É difícil manter um mínimo de ética em um ambiente assim.
Logo depois de nossa paciente sair o professor foi chamado à direção, pediu que eu atendesse sozinho o próximo paciente. Entrou um homem de meia idade e dizendo que estava muito bem e que havia apenas uma suspeita de diabetes. Pedi para ver os exames: Hbglicada, 17%, Glicose, 564mg/dl, todos os outros exames compatíveis, inclusive uma hemoconcentração gigante. Na anamnese toda pergunta era respondida com um sonoro "não" e o nervosismo era intenso mas ele negava até o fim qualquer problema. Algumas coisas eram absurdas, como negar o emagrecimento súbito quando eu via marcas de estrias em seu braço e, quando confrontado com o fato disse que era "de nascença". Poderia acreditar na clínica, sempre soberana ao exame, mas o nervosismo e a insistente negação me incomodava. Havia algo nitidamente errado e eu não conseguia descobrir o que.
Insistiu que não queria nenhuma medicação, não prestou atenção ao aconselhamento de dieta e exercícios, nitidamente deixou claro que queria apenas fugir de lá o mais rápido possível e foi o que fez quando o professor voltou, bastante estressado, e sugeriu que apenas fosse repetido o exame. Ele foi e eu me senti sozinho no consultório. O paciente tem o direito de ser tratado ou não, não tem o direito de onerar desnecessáriamente o sistema como queria a nossa amiga, mas tem o direito de acreditar ou não no que dizemos. Mas é duro para nós não conseguirmos conquistar o paciente, fazer com que ele entenda que é para o seu bem, afinal, estudamos tanto e um dia acreditamos que isto bastaria para sermos idolatrados como deuses. Não basta, e precisamos nos acostumar com isto.
Ouvi dizer que São Pedro, o São Paulo, sei lá, o tal fundador da Igreja Católica, teria ido fundá-la na Grécia, então capital do conhecimento. Lá resolveu explicar aos gregos a doutrina pregada por Jesus. E começou a discursar apontando os aspectos racionais da doutrina e homem inteligente que era conseguia rebater críticas e, por fim, conseguiu com base em argumentos racionais convencer um grande número de gregos sobre a verdade da doutrina que apresentava. O resultado prático disto, no entanto foi quase nulo: acostumados com um grande número de Deuses, Jesus era apenas mais um, um bem interessante, admitiam, mas apenas mais um.
Paulo percebeu isto e, reza a lenda, e foi para Roma. Iluminado, iria agora conquistar o mundo: não pela mente, mas pelo coração. Os homens, ele tinha percebido, raramente fazem o que é lógico ou racional, em geral seguem seu coração e não o seu cérebro. Mil e novecentos anos depois Freud concorda e leva quase mais cem anos para Damasio estruturar uma elegante teoria neurocientífica para "provar".
Faz sentido. Mas tudo que eu disse até agora pode não ser verdade.
A função deste blog era então me desculpar, me auto-elogiar ou me expor e ser sincero?
Pensando bem, pela mente ou pelo coração eu tenha errado.
A primeira paciente, o estresse sendo sintoma ou sendo causa, mereceria uma atenção maior? Mereceria "entrar no jogo" dela para garantir sua colaboração? Talvez merecesse mais escuta, mais carinho, mais atenção do que os poucos minutos que reservamos. Talvez mais explicação sobre o que é a internet e menos orgulho ferido por ser substituído por um computador amorfo. Se uma vírgula ou uma palavra a menos fizesse diferença. Eu queria que ela tivesse ficado.
Ele também. Fui grosso. Estava estressado. (Não é desculpa) Assustei-o. Às vezes vemos nossos mestres agindo e atribuímos certas vitórias a certos comportamentos, mas talvez elas devessem ser atribuídas a outros. Até ser grosso, até assustar, é uma arte que não é fácil aprender e não está em livro nenhum, e é perigosa demais para se aprender por observação.
Melhor nunca mais tentar.
Errei.
Errei feio.
Logo na arte que me julgava bom.
Justo quando nos achamos bons demais, justo quando pensamos que sabemos, vem o real e nos dá uma bela lição de humildade.
Agradeço ao mundo por ser tão desafiante.

sábado, março 08, 2008

A causa secreta

Estávamos em visita domiciliar, a mãe, bem idosa, na cama o coração de tão fraco debatia-se agonizante para manter o pouco de útil que ainda lhe corria pelas veias ativo, e como que murmurando em desesperada agonia o sopro hipercinético conseguia ser mais audível do que as vagas reclamações, coisa da idade segundo Dr. Fortunato que a escutava com um gentil sorriso. Sim era ele mesmo, só que agora era médico, o enfermeiro de Machado de Assis reencarnado 147 anos depois, isto foi a um ano. Causas secretas nos levam a atitudes surpreendentes, causas estas que se expostas revelariam a lógica por trás da contradição e o absurdo.
Não havia dúvida que era ele, Dr. Fortunato, quem mais aguentaria tanta tristeza de modo de forma tão inabalável, não bastava o que era dito espontaneamente, ele ainda tinha que perguntar e insistir. Mas um problema lhe chamou a atenção: havia algo de errado com o filho da tal senhora, irmão da dona da casa. É claro que ele tinha que saber, precisava, agora mais que tudo, saber. Para tanto usou o argumento indiscutível: "Sou seu médico, eu TENHO que saber". E conseguiu o que queria. Eu não soube deste segredo, mas sei que este é apenas um dos muitos segredos que jamais saberei dos meus pacientes, agora o que saber deste segredo mudou na conduta médica do Dr. Fortunato é algo que eu também jamais saberei.
Esta história vai e volta em minha mente, e a cada sofrimento que vejo um paciente desnecessariamente submetido me vêem o enfermeiro de Machado de Assis e seu clone mais moderno. Algumas vezes a coisa não é tão óbvia, outras é mesmo discutível. O velho benzetacil na profilaxia da febre reumática, a discussão dos psicanalistas que falta aos médicos remoer as entranhas do sofrimento de seus pacientes, meramente questões profissionais, nada mais que isto. Talvez eles tenham razão só se aprende a andar andando e só se aprende a sofrer ressofrendo várias vezes.
Mas às vezes nem tudo é tão óbvio.
Entramos no quarto da paciente com uma missão explícita: fazer uma anamnese e voltar com um diagnóstico. Quer era infecto-parasitária era óbvio, afinal no alto da porta de entrada havia a sigla "DIP". E a pergunta clássica teve uma resposta trivial: "dor de cabeça", enquanto todos anotavam a resposta, poucos perceberam a ameaça da acompanhante: "Fale a verdade, não adianta mentir, depois eles vão ver em seu prontuário."
Porque a paciente mentiria? Talvez pelo mesmo motivo que desviava o olhar e buscava uma fuga, de sua acompanhante-irmã e dos desagradáveis internos. Um olhar atento à irmã poderia já dar bastante ajuda: o olhar de reprovação, a camisa da igreja evangélica, as ações de pena explícitas. E quanto mais vinham perguntas, mais a paciente se escondia, mais a irmã dava respostas evasivas até que veio o auge da tortura explícita: "a quanto tempo ela vem apresentando este comportamento?".
A irmã não conseguiu segurar mais o choro, apenas repetia: "Ela era tão forte... Porque ELA teve que agir assim?", eu também não consegui mais segurar a cena, em voz bem alta para que todos escutassem, pedi licença e fui. Quando eu saía, ainda escutei uma voz: "mas nós ainda não descobrimos a doença", "CID B23", respondi.
Muitas vezes não é culpa nossa, algumas é sim, realmente necessário. Mas será que para o paciente faz alguma diferença? Tortura é tortura seja qual for a face que damos a ela, seja qual for seus fins. E é claro que nenhuma tortura seria pior para a evangélica do que ter uma irmã que carrega em seu sangue a cólera divina aos males da modernidade e também não há tortura pior para tal pecadora ser lembrada o tempo todo que tudo que lhe acontece agora é uma punição por seu comportamento promíscuo.
De que adianta teorias científicas uma hora destas?

domingo, março 02, 2008

Assim a tranquilidade alimenta a minha escuridão

Lenore, não enfrente teus monstros sob pena de tornar-se um deles: aquele que contempla o abismo, pelo abismo é contemplado.
Sempre soube que não deixaria o filósofo romântico tão cedo, especialmente agora que todo este romantismo me enoja.
Os médicos estão irritantemente se polarizando entre os poderosos heróis, pedantes e arrogantes, mal sabem o triste fim que lhes aguarda enquanto os plantões, e às vezes as drogas da simples cafeína à irresistível dolantina, lhes drena o pouco que sobra de vida e humanidade, e os românticos derrotados, depressivos e solitários que foram atropelados pelo mundo antes mesmo de juntarem as forças necessárias para salvá-lo. 20mg de fluoxetina não vai te tirar desta. Você ainda não viu nada.
O sofrimento te consome e te obriga a escolher um caminho: ou se anestesia ou se destrói. A morte será sua companheira, a dor uma amiga inseparável, daquelas que adora detestar. O mal-estar da civilização a partir de agora é culpa sua, você foi incapaz de curá-la porque não estudou o suficiente. A resposta, o diagnóstico, o tratamento: tudo isto está depois daquela esquina, mas você é o imbecil, burro e incompetente que não conseguiu chegar lá.
Burnout: Será queimado vivo.
Escreva. Mantenha a sua sanidade. Você não criou o mundo, não pode salvá-lo. Síndromes, doenças, patologias só existem em livros e fora deles há o mundo cuja alegria e beleza é sua escolha ver, ou não. A morte não é culpa sua e o mundo depois de você será igual ao que era antes, mas o que acontece no meio é que é escolha sua.
Escute: cada paciente é uma vida, cada vida uma enorme oportunidade de aprender. Toque: sinta o humano, assuma o controle. Cure: ninguém disse que estudar não era importante, mas a cura é muito mais que conhecer, é saber, é crer, é viver. Sorria: muitas vezes só isto basta. Não espere o que não vem, não deseje o que não tem. Lute: mas não espere vencer e não se cansará nunca.
Escreva, não contemple o sofrimento, escrevendo você aprende, apreende, torna-o seu para o que você quiser. Refaz, revive, reconstrói a realidade, constrói a sua realidade, uma que corresponda ao seu anseio. Escreva, escreva muito e, um dia, esta realidade será a única que conhecerá.