sexta-feira, julho 29, 2005

MEMENTO MORI

Mandaram que fizéssemos uma campanha de prevenção da hipertensão arterial. Vinham os pacientes, as fichas médicas, tirávamos a pressão e aconselhávamos. Se persebêssemos que o caso seria de terapia medicamentosa, era só chamar a preceptora.
Já tinha-se, e muito, deixado de ser novidade, quando peguei a ficha de um sargento da polícia militar. Terceiro sargento, cabelos brancos. O rosto mostrava anos de soldado. Na ficha estava que estes anos marcaram mais que o rosto: 23 perfurações de bala. Perdeu rim, parte do intestino e toda a felicidade de viver.
"O senhor deveria controlar a pressão arterial?"
"Por que?"
"É uma das doenças que mais mata no país."
"E daí?"
Sid

Fantasmas

"Eu quero ir morrer em casa."
Sempre imaginei que eu ia, mais dia, menos dia, me deparar com esta frase. Imaginava também que seria no CTI. Admito, entretanto, que não me comoveu tanto quanto eu imaginei que ia. Ou a banalização da frase já me anestesiou ou entendi o raciocínio do paciente. E, a partir daí tirei minhas próprias conclusões.
"Aqui todo dia morre um, estou aqui há quase uma semana e já foram 5."
"O próximo vai ser você." Disse olhando o paciente ao lado, que esboçou um sorriso. Se eu fosse tentar me botar no lugar destas pessoas, acho que nada disto me pareceria tão surreal.
Olhei para as "janelas" fechadas com papel opaco, e as luzes fosforecentes, frias, eram 2 da tarde, mas se fossem duas da manhã não seria muito diferente.
"Quando a velha daquele leito se foi, eu vi os médicos e enfermeiros em volta, tentando fazer alguma coisa, e ela tentando entender o que estava acontecendo. Só que ela estava no teto, olhando para baixo. Sem entender nada."
"Acho que os mortos daqui são muito assustados. São estes médicos que enganam a gente o tempo todo. Você sabe, eles mentem para a gente. Falam baixo quando lêem os exames, para a gente não escutar mesmo."
"Olha: desde que eu vim para o CTI eu não posso mais me mover. Tem enfermeira para tudo. Quando eu estava na enfermearia eu ia até ao banheiro sozinho. Aqui tem um mulher até para lavar o meu cu."
"Eu tenho um sobrinho que é fisioterapeuta. Ele disse que eu não posso ficar assim. Ele se propôs a vir aqui, mas o doutor disse que o Hospital me enviaria um fisioterapeuta e até agora, nada."
"Aqui a gente tem a enganação de que vai ficar bom. A gente tem esta ilusão de saúde, mas estamos morrendo. Enganados. Esquecidos. Infelizes."
"Minha casa é cheia de gente. Cachorro. Gato. Tem um monte de vagabundo lá que eu sustento, toda hora sai uma porradaria. Faz a gente se sentir vivo."
"Aqui eu fico nesta cama. Tiraram o seu celular e a minha TV, disseram que o barulho incomodava os outros. Tudo bem... Acho que encomoda mesmo. Você sabe qual o horário que pode vir alguém? Só das 4 às 5. Uma hora. Todo dia, só aquele horário... E quem vem? Quem se dispõe a vir até aqui?"
"Acho que fecharam as janelas para a gente não pular. Olha: não faço questão de mais alguns meses assim. Já vi muita gente morrendo aqui, e eles me disseram que estão mais felizes agora. Eles disseram para eu não ficar enrolando não. Ir para casa me despedir de todos e ir encontrar com eles."
Saí do CTI estranhando minha reação. Eu queria estar comovido. Chorando, quem sabe? Grandes e fortes emoções. Nada. Estava calmo. Apenas tinha entendido o recado, entendi a lógica da conclusão. Entendi até que o stress fizesse o paciente delirar. Afinal, espíritos, não existem. Não em um hospital.
Fiquei pensando também em quanto é difícil entendermos o que se passa na cabeça do paciente. Conhecemos muito pouco deles, em todos os aspectos. Nos iludimos que temos uma noção do que ocorre quando na realidade apenas reproduzimos de forma fractal o pouco que sabemos até formar uma imagem verossímel da realidade. Mas não sabemos nada.
Fui procurar o médico responsável. Sugeri a baixa do paciente. Impossível, disse ele. Quanto estava saíndo, perguntei: "Doutor, existe algum impedimento para que ele faça fisioterapia?".
"Ele está fazendo."
"Ele disse que não"
"..."
"Merda... Por cadê a porra do fisioterapeuta?"
("Cadê a porra do pedido?")
Fiquei pensando. Quanto custa um fisioterapeuta? Quanto custa toda aquela parafernalha no paciente? O que importa mais: mantê-lo vivo ou mantê-lo confortável? Uma janela aberta... Vento... Sol... Tudo isto é de graça.
Por que nos iludimos que somos imortais?
Sid

segunda-feira, julho 25, 2005

Contra-transferência

Fui conversar com o paciente. Um senhor idoso e alegre. Tinha trabalhado na indústria naval, trabalho este que o deixou surdo. Como eu. Não escutava nada do lado esquerdo. Como eu. No meu caso tinha sido o estande de tiro no quartel, no caso dele as chapas de aço que se chocavam.
Tinha acabado de sofrer uma cirurgia no estômago. Coisa normal. Fui perguntar o que houve, mas não imaginei que a resposta me chocaria tanto.
Tinha um vizinho que o perseguia. E o xingava insistentemente. O ofendia e o observava. De início imaginei que ele tinha se metido em uma briga. Um tiro ou uma facada. Teve sorte, imaginei.
Mas ele continuou a narrativa, contou-me que o tal vizinho colocava escutas e câmeras escondidas por toda a sua casa. Desmontara a TV, mas o tal vizinho fora mais esperto, abriu-a antes e retirou a câmera antes que pudesse provar a família que estava certo. Mas ele o perseguia insistentemente. Aí ele me disse que tomou um vidro de cola. Precisava punir o vizinho.
Acabou me escapando uma pergunta talvez não tão óbvia quanto pareça: porque ele tomou cola se queria punir era o vizinho? A resposta me fez tremer: O vizinho tinha chegado ao limite do tolerável: disse que ia atacar sua netinha com quem ele morava.
Não aguentei a resposta. Era "óbvio", pelo menos para mim, que não havia vizinho nenhum, mas provavelmente uma esquizofrenia. Se ele tomou veneno para punir o "vizinho" que iria atacar a sua neta, minha dedução imediata é que a garato estaria correndo perigo, tão logo ele saísse do hospital. Pensei em matá-lo.
Quatro anos servindo no Operações Especiais, e nunca veio a oportunidade de uma missão real. Enquanto eu estudava para o vestibular, meus colegas estudavam para a polícia. Passaram, alguns, e vieram com aquelas histórias de como salvaram o mundo, e eu?
Agora eu tinha a minha oportunidade: um estrupador pedófilo em potencial.
Matá-lo certamente envolveria um planejamento que não seria viável na ocasião. Assim procurei o responsável do andar, que, como todo cirurgião, atendeu-me com o desdém que um acadêmico assustado merece. "Você ainda tem muito que aprender. Vou te dizer uma coisa: o tal paciente é esquizofrêncio, ele não segue a nossa lógica. Estamos em final de semestre. Você não tem nenhuma prova? Vá para casa estudar que você ganha mais."
Saindo do hospital vi dois pacientes conversando. Reclamavam dos médicos e do sistema de sáude, claro, como é comum aos pacientes. Um deles disse: "Queria ver se este doutorzinho faria isto comigo se eu fosse bandido." Aquilo foi como uma facada.
Será que eu iria ter a mesma vontade de matar, não um velho, mas um traficante e conhecido estrupador? Sei que certamente teria, mas agiria da mesma forma? Teria a mesma coragem?
Talvez como uma desculpa hipócrita imaginei que eu o correto não seria eliminar uma vida, mas sim o sofrimento nela. Talvez buscar a cura para os ímpetos de violência sexual. Mas isto é hipocrisia e covardia. Pode até ser verdade e ser o correto, mas o que me levou a esta conclusão não foi nada mais que a covardia.
Fui para casa estudar, era realmente a melhor coisa a fazer.
Sid