sexta-feira, setembro 29, 2006

Meu Rei

Desta vez era a janela, ou o vento que saía dela. Sempre era alguma coisa e isto me deixa preocupado: as pessoas que gostam de odiá-lo estavam ficando mais numerosas do que as que odeiam gostar dele. Colhia a história do paciente no leito ao lado da janela quando o barulho da discussão ficou insuportável. Fui intervir, afinal ele tinha prometido para mim comportar-se.
As desculpas eram sempre muitas, das quais a poucas se dava atenção. Desta vez elas giravam sobre a residente, que tinha cometido o pecado de tratar-lhe mal. Queria ir embora, assim dizia. Tinha muito o que fazer em casa, uma família enorme para cuidar, negócios importantes para gerenciar, não podia ficar perdendo tempo no hospital. Enquanto falava, ia se acalmando. Era sempre assim. Em pouco tempo eu pude voltar ao meu trabalho.
Mas sua personalidade era marcante demais para ignorar e o resto da anamnese ficou contaminada por discussões sobre ele. "Meu Rei" é um senhor negro, alto, forte, voz rouca e penetrante, nascido em Vitória da Conquista, naturalidade que inspirou o apelido. Capoeira de nascença, agressivo por profissão, confuso, talvez, pela doença: crises hipertensivas haviam gerados pequenos acidentes vasculares cerebrais associados à raras convulsões. Mas nada disto pareceu assim quando colhi pela primeira vez a sua história clínica: A "Queixa Principal" insistia que era "excesso de mulher", na "História Patológica Pregressa" um improvável transplante cardíaco "curado com células-tronco", na "História Familiar" 67 filhos "contando só os que estão no Brasil" e por aí ia.
Informações cuja a minha imaturidade me impede de interpretar e me leva duvidar, existe, no entanto, uma parte de sua história clínica que eu nunca tive nenhuma dúvida: fora agente do extinto Serviço Especial de Saúde Pública.

"Meu Rei" escondia um pouco mais do que detalhes importantes sobre a sua patologia quando devaneava durante a anamnese: ele escondia um período negro de uma medicina em lua-de-mel com o poder político autoritário, o braço armado de uma Saúde Pública que enquanto discursava humanista, mostrava aos excluídos a sua face dura e cruel. Uma Saúde Pública que ainda hoje insiste em tatuar em nossa mente de estudantes de medicina sonhadores e bem intencionados a prepotência da ciência e a soberba do estetoscópio. Aqui aprendemos a idolatrar a arrogância ditatorial de Oswaldo Cruz, que usou o poder contra o povo e a varíola, e a ignorar Rodolfo Teófilo que lutou com o povo contra o poder e a varíola. Assim reproduzimos um comportamento e garantimos a sustentação filosófica e social do poder político vigente.
Meu Rei lutou contra a lepra. Cada marca em seu corpo conta a história de um prisioneiro, julgado, condenado, caçado e capturado para morrer em presídios camuflados de asilos, sem direito sequer à dignidade, cujo único crime foi ter contraído a hanseníase. Ele me confessou temer o hospital, sabia que era lá que os condenados eram "guardados" para morrer, sabia porque muitas vezes fora ele quem os condenou.
Mas os leprosos se vingaram: condenaram também Meu Rei ao seu pior pesadelo: a amar o seu inimigo como a seus súditos. Fora do hospital já não seria mais "Meu Rei", já não teria mais platéia para o teatro que transformou a sua vida. Fora do hospital já não seria mais.
Ele não sabe que eu sei o pecado da residente: a hipertensão está controlada e a epilepsia responde bem à medicação. Em breve Meu Rei terá alta.
Sid

quinta-feira, setembro 14, 2006

Obrigado

Logo que entrei na enfermaria masculina eu percebi as cortinas em volta do leito de número 16: houve um óbito. É uma situação comovente, não obstante eu já tenha me acostumado, sempre me detenho para ver a reação das pessoas em volta, mas desta vez eu procurava uma pessoa específica, cujo leito ficava em frente ao do morto. Com isto fiquei observando a cena tempo suficiente para escutar uma voz, que não me preocupei em reconhecer, perguntar se era meu parente. Sem me virar, observando os enfermeiros fecharem o saco preto e o colocarem na maca, eu respondi que não. A voz, com a resignição usual aos longos habitantes dos hospitais e com um tom que queria dizer bem mais que isto, disse de forma seca: "aqui é onde as pessoas morrem." A depressão, aparentemente, cura-se espontaneamente em uma cicatriz de sarcasmo naqueles que vão perdendo a esperança da alta.
Insistia em procurar o meu paciente pois apesar de saber que tinha tido alta, sabia também que ele só iria embora do hospital depois da medicação no final da tarde. O saco de roupas e o rádio jogado sobre o colchão confirmaram a minha suspeita de que ele ainda estava por perto. Mas não na enfermaria. Encontrei-o sentado na escada e me sentei ao seu lado.
-Soube que você vai embora...
- É... ... ...porque não separam os pacientes muito graves dos que estão melhorando? Porque precisamos ser expostos a isto?
Enquanto eu explicava para ele que juntar todos os "condenados" em uma ala comum seria um ato de extrema arrogância daquele eventualmente responsável pela triagem que acaba por deixar marcas difíceis de serem apagadas naqueles que, eventualmente, conseguem sobreviver conforme demonstra a experiência em hospitais onde isto acontece. Por isto lá não era assim. Mas enquanto eu explicava a ele, eu ia me lembrando de como ele chegou, há quase um ano.
Fraco, contorcendo-se de dor e com os olhos profundos de tristeza e humildade. Me lembrei da primeira vez que o vi. O professor indo repassar as anamneses, e ensinar a avaliação dos sinais vitais. Tínhamos que sentir o pulso dele, primeiro o radial, no punho. A cada aluno, o professor pegava o punho dele que ele insistia em apoiar a cabeça, cada vez de forma mais agressiva, como se dissesse: "deixe o seu braço aqui, não vê que estou dando aula?". Furei a fila dos colegas, peguei o cobertor que estava enrolado ao lado de sua cabeça e, enquanto ele me olhava assustado, apoiei a sua cabeça, enquanto ele tentava se desculpar: "...é que eu estou sentindo um pouco de dor..."
Mas chegou a hora do pulso carotídeo, no pescoço, e o professor, para melhorar o acesso ao pulso, retirou bruscamente o cobertor o que fez com que o paciente se contorcesse de dor. E começou a mexer com a cabeça dele para lá e para cá. Quando eu disse: "Professor, o paciente está com dor." Óbvio que esta foi mais uma das minhas intervenções inconvenientes. E eu prendi a lição de que os pacientes de um hospital universitário servem exclusivamente para que estudantes aprendam medicina. Afinal, alguém tem que fazer o sacrifício para que seres tão especiais sejam formados. Ou você prefiria que não existissem médicos?
O tempo foi passando, e eu fui mantendo as visitas a ele, fui tentando mostrar que, apesar de ser o X do leito Y ele era um ser humano e como tal deveria ser tratado. Passava lá para rever as aulas de sinais vitais, nas quais eu sempre pedia para que ele me guiasse em seu próprio corpo: "Meu dedo está perto de onde pulsa? Me avise quando parar de 'sentir' o barulho..." Deixava claro que estava aprendendo e que nada daquilo contribuiria para a sua melhora, mas exclusivamente para a minha. A franquesa me fez conquistar a simpatia e ele sempre me perguntava o que eu tinha aprendido em aula. Que excelente exercício era explicar a ele!
Hoje ele estava lá. Ainda de aparência frágil, mas andava pelos corredores sem dor e era capaz de exigir um tratamento digno. Não éramos tão diferentes assim, um do outro, sentados na escada atrapalhando o fluxo de pessoas ocupadas...
Ficamos um tempo em silêncio, como se houvesse tanta coisa a dizer um para outro que simplesmente não valia a pena começar a tentar. Ele, afinal, tinha que ir para casa, levantou-se portanto. Ohei para ele e, mais como amigo, disse que agora ele tinha que se alimentar direito, fazer algum esporte e... ...procurar os Alcóolicos Anônimo. Abaixou os olhos concordando.
Quando ele se virou para ir embora (talvez tenha dito algo demais), estendi a minha mão a qual ele apertou com o olhar assustado do primeiro dia em que o vi. Alguns segundos sem dizer nada, tomei coragem e disse: "obrigado". Pela primeira vez senti dele um aperto forte, seus olhos mudaram para uma expressão de curiosidade que foi verbalizada com um "por que?".
- Por me ensinar medicina.
Nunca nenhum professor fez algo pelo qual ele não estivesse sendo pago para isto, ele não estivesse com a obrigação social e moral de fazer. Ele não. Fez por favor. Devemos ser eternamente gratos a nossos pacientes.
Sid