quinta-feira, janeiro 17, 2008

Personagens

Eu ali não era eu, era um personagem. Contava a minha vida de personagem, de reunião do grupo de teatro, virou aula de teatro. Ridículo, simplesmente ridículo. Não passava pela cabeça dele que eu tivesse mais o que fazer do que ficar escutando um monte de pré-adolecentes em uma brincadeira imbecil? Mas a explicação dele chocou-me pela lógica e ficou a lição, do que disse e de que eu não sou sempre o único que "vê além" e que a minha existência como pessoa - e como aluno como outro qualquer - é parte de minha função na sociedade e, principalmente, nesta comunidade.
Somos todos personages: este que acabamos de inventar, aqueles que achamos que somos ou aqueles que os outros acham. Somos teatros, atores que encenam no palco do teatro cartesiano de cada um. Fácil de entender e fácil de aceitar, o difícil é lembrar disto sempre e agir de acordo. Mas não há como fugir.
A médica antes tinha reclamado: eles pensam que somos ricos. Não pensam, somos. Chorar miséria não criará um novo personagem, apenas tornará o antigo mais ridículo. E não importa de onde você veio, a cena da primeira reunião do grupo de teatro e a cena da médica dizendo que também vinha de uma comunidade carente misturaram-se em minha mente ao ver a primeira peça montada. Talvez não fosse a intenção de ninguém, mas eu me vi na peça. Claro que era eu, éramos nós, a diretora que queria doutrinar os alunos favelados, assim como ela na peça, nós também vínhamos nos aproveitar da miséria alheia para ganhar dinheiro do Estado com o sofrimento deles, e doutriná-los.
A quem queremos enganar? Sentimos orgulho de tornarmos santos e a raiva frente a ignomínia, tudo isto torna hipócrita qualquer tentativa de aproximação por igual. Isto não é possível e talvez só sirva para o nosso ego. Não somos superiores, mas ganhamos mais. Se o valor de um homem é medido pelo seu contra-cheque, é porque não foi-lhe mostrado outro valor e contra o fato por demais óbvio argumentos são inúteis. Aceite isto e cale-se.
Simplesmente não dá. O nosso personagem em nós mesmo também é julgado esteticamente como em qualquer peça, só talvez sejamos aqui mais cruéis. Aqui a estética traveste-se de ética e condena à uma vida de ódio e sofrimento aqueles que representam aos outros personagens que não condizentes com o mundo que construímos e nos satisfazemos em ter domínio sobre ele. Saber que somos sempre um personagem e que os padrões estéticos não foram criados por nós e, portanto, não precisamos aceitá-los cegamente ajuda a enfrentar a vida que independe de nossa vontade e compreender que nosso "imenso" salário não é para tentar impor uma forma de sermos visto, nem qualquer padrão seja ético ou estético, mas para cumprirmos o nosso dever como profissionais técnicos. Não estou lá para que o meu personagem tenha um roteiro bonito, mas para que os outros personagens tenham vida e saúde por toda a peça.
Bonito ou feio, rico ou pobre, eu quero ser um bom médico.

domingo, janeiro 13, 2008

O Grande Deus Asklepius Morreu

Peça aos médicos que lhe apresentem indicadores e eles levantarão o segundo quirodactilo, quem poderia supor o absurdo, que os médicos já não sabem nem mais o que fazem. Talvez Foucault diria que a maioria nunca soube, mas tudo bem, antes de eles se aperceberem como sustentação filosófica do Estado, quando os indicadores não faziam mais diferença que o quinto quirodactilo, já não serão mais: os indicadores que sustentam a nova religião.
A ignorância do exército estadunidense ao adotar o caduceu, símbolo de Hermes, deus do comércio, como insígnia de seu quadro médico talvez escondesse uma sinistra profecia: Asklepius perderia seu posto para o mensageiro. Como a águia da parábola de Esopo triste será o fim da medicina, que dá aos inimigos a própria arma com a qual é abatida.
Ao agir como mecanismo de controle social, a medicina precisou se universalizar, atingir a todos, evoluir de "humanitária" para obrigação do Estado e passou a ser exigida pelos controlados: de que vale um Deus se é só para os ricos? A massa precisava do Tanatos para ser controlada e Deus morto, Deus posto: a medicina que surge como nova fonte geradora de medos e pecados, a nova moral, a nova redenção, para ser Eros precisava de uma base que a sustentasse. A base que a sustenta, como o símbolo chinês Tai-Chi é a própria estrutura capitalista e como a cobra engole o próprio rabo a medicina precisou ser eficiente para ser universal.
Nem universal nem eficiente o ciclo quebrou, na melhor visão capitalista, o sistema faliu. Novos conceitos, novos valores, novos controles este agora, bem mais sutil mas avança com avançou a medicina: desmoralizando o antigo regime. Desumaniza a medicina e reclama da desumanização, mercantiliza a ciência, ridiculariza a arte, caricaturiza os médicos: sentem-se os semi-deuses, soberbos e vaidosos, bom tinham motivos para isto antigamente...
Tudo que é novo conspira a favor deste Deus sedento: não podemos fugir a ética e estética da "evolução", ou somos homens de nosso tempo ou simplesmente não somos. É preciso humanizar a medicina, dar humildade aos médicos, fazê-los escutar e usar o próprio paciente no processo de cura. O discurso do professor barbudo e de sandalhas é o mesmo do administrador engravatado: Só assim a medicina ficaria eficiente. A diferença é só a camisa de Che Guevara. Eficiente é o grito dos que acordarão do sonho romântico de revolução mas é também o mantra dos novos sacerdotes.
E nós médicos ainda sofreremos muito para perceber que já não somos tão especiais. A nós só nos resta o mal-do-século, como os românticos a dor de ser incompreendido, a depressão e a angústia, tínhamos a resposta para o mundo, acreditamos que salvaríamos, poderíamos, se deixassem. Por que ninguém nos ouve? Por que sou tão sozinho? Por que estão todos contra mim? Vivíamos em um planeta em que éramos ricos e respeitados? Mudamos de planeta e o poder nos enebriou tanto que nem percebemos...
Não choro a morte de nenhum Deus, mas de Foucault.