segunda-feira, outubro 09, 2006

Onde menos se espera

Propor-se a trabalhar com pessoas é expor-se ao inesperado, ao incômodo, ao desconsertante e ao amedrontador. É estar preparado para enfrentar seus temores e desejos. É saber separar aquilo que você gostaria que fosse (ou que não fosse) daquilo que realmente é. É saber superar imposições e barreiras éticas, morais e religiosas. É saber ser e deixar que sejam.

É também um exercício diário. Aprender a se reconhecer e a aos seus sentimentos, pode não parecer tão simples, mas é fundamental para o exercício da profissão e só é possível quando se sabe exatamente quem é você e porque você está ali. O que você pode fazer e quais as implicações que seus atos podem ter.

Com estas coisas em mente vamos aprendendo a nos comportar. Primeiro o paciente que fede, o paciente que é sujo. O homossexual apaixonado, o hipocondríaco carente: erros nossos que vêem à tona. O doente teimoso, o que é arrogante, o que devia ser médico: estes nos ensinam que é mais difícil lidar conosco mesmo. Já o agressivo e o criminoso nos ensinam a ter firmeza e segurança no que dizemos. Tem também aquela cuja beleza é evidente demais para ignorarmos. Esta, talvez, seja a mais difícil.

Mas existem coisas que transcendem qualquer compreensão, que vão muito além do que podemos supor ou explicar. Um professor negro já é raro, outra lição anti-preconceito. Conversávamos no corredor, me falava sobre a sua religião: dizia que o unia com o seu ethos, assumia assim a sua cultura e uma dívida com seus ancestrais, como que se a fé necessitasse explicações. Narrava o que ocorria nos cultos e como isto levava a compreensão do comportamento humano fundamentais para a sua experiência como psiquiatra.

Foi quando eu perguntei a ele se ele já havia visto nos cultos algo que não conseguisse explicar à luz da ciência. Alguns poucos minutes de silêncio, os olhos nitidamente buscavam uma lembrança a que se apoiar, a mente buscava uma explicação racional para tudo enquanto pensava uma resposta. Disse o cientista: “não”. “No terreiro não, mas no consultório sim”, completou o médico.

Nenhum comentário: