sexta-feira, outubro 27, 2006

Tire a mão de mim

Quando vamos solicitar a algum paciente que nos deixe treinar o exame físico algo de estranho ocorre: o que era para ser um favor dele para nós, é encarado por eles como uma obrigação difícil de ser negada e com bastante sofrimento agregado.

Em um leito existe um sofrimento em forma de ser humano que se estivesse bem estaria em casa e não na enfermaria de um hospital público, agora vem um chato te cutucar, te bater com a ponta do dedo e haja "trinta e três"! Um paciente uma vez me disse, quando lhe perguntei se doía: "Até hoje de manhã não doía, mas tanto futucaram estes meninos que está doendo" Meu colega reclamou, como que aquilo fosse uma afronta e não uma justa reclamação. Não cabe aqui ter pena, e sim seriedade, empatia e respeito.

Este é o dia-a-dia de nós, estudantes, ocorre tanto que já nem mais me dou o trabalho de escrever, estarei em perdendo a empatia, anestesiando-me do sofrimento alheio? “Como todo médico”?

Mas esta noite, na sala de parto natural houve uma cena marcante demais para passar desapercebida, cuja raiz eu vejo no mesmo problema. Especialmente porque eu notei que alguns colegas sentiram orgulho, quando eu senti vergonha daquela mulher.

Grávida a termo, moça humilde, porém digna. Pai conhecido e amado, humilde também, esperava lá fora, preocupado e ansioso: era o primeiro filho do casal. A moça estava na sala de parto com a mãe segurando em sua mão.

Jamais saberei como dói a dor do parto, mas se a intenção de Deus era mesmo punir Eva pela tal maçã, aquele Deus do primeiro testamento não era mole: deve doer mesmo. Ela já não tinha mais lágrima, desnuda exposta como nunca estivera a tantos homens, a tanta gente. A dor a impedia de qualquer vergonha.

Será que alguém teria o direito de cobrar desta menina um vocabulário condizente com aquele que os professores doutores acham que seria apropriado?

"Mãe, pede para esta mulher tirar a mão de dentro de mim, porque está doendo muito", disse entre gemidos e soluços.

"Mulher não. Para você é 'Professora Doutora'"

Imediatamente me veio a dúvida: se para a paciente ela era "Professora Doutora" quem ela era para ela mesma? Não tenho dúvida que, ao tirar o jaleco branco, ela deveria ser alguém que não merecesse qualquer crédito, pois quem não aceita-se como ser humano ("mulher") e precisa de uma fantasia para "ser", não deve ter nada por dentro.

Deus me livre que a fantasia me marque suficiente para que não consiga tirá-la, que eu não seja nada além dela, por dentro e por fora. Vou precisar ser forte, mas não deixarei esta vaidade por as mãos em mim.

Sid

quinta-feira, outubro 19, 2006

Saco

"Que saco!" Ele disse. "Será que não dá para alguém mandar ela calar a boca?" Referiu-se para a equipe de enfermagem. Eu ao seu lado, deveria ter ido lá e falado com ela. Eu sabia o que dizer, estava fantasiado de Deus envolvido em símbolos de poder: o estetoscópio pendurado e a toca verde. Mas não fui. Fiquei vendo a monitorização da outra paciente, fiquei puxando o saco do professor.
Agora eu sei exatamente o que deveria ter dito: "eu sei exatamente o que senhora está sentido, já passei por uma cirurgia bem semelhante a esta. Foi feita uma medicação analgésica e em breve a senhora não vai mais sentir dor. Por favor, tente relaxar, existem outros pacientes na aqui na sala de recuperação pós anestesia geral que também precisam descançar..."
Será que ela teria calado a boca? Será que eu teria ganhado uns pontos com o professor?
Eu, com certeza, agora não estaria aqui relatando mais este erro. Poderia ter sido pior, poderia ter criado uma dependência que faria ela gritar ainda mais quando eu fosse embora, mas tudo poderia quando nada foi feito. Menos um sofrimento que tentei aliviar, escrevo para que da próxima vez eu não hesite.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Onde menos se espera

Propor-se a trabalhar com pessoas é expor-se ao inesperado, ao incômodo, ao desconsertante e ao amedrontador. É estar preparado para enfrentar seus temores e desejos. É saber separar aquilo que você gostaria que fosse (ou que não fosse) daquilo que realmente é. É saber superar imposições e barreiras éticas, morais e religiosas. É saber ser e deixar que sejam.

É também um exercício diário. Aprender a se reconhecer e a aos seus sentimentos, pode não parecer tão simples, mas é fundamental para o exercício da profissão e só é possível quando se sabe exatamente quem é você e porque você está ali. O que você pode fazer e quais as implicações que seus atos podem ter.

Com estas coisas em mente vamos aprendendo a nos comportar. Primeiro o paciente que fede, o paciente que é sujo. O homossexual apaixonado, o hipocondríaco carente: erros nossos que vêem à tona. O doente teimoso, o que é arrogante, o que devia ser médico: estes nos ensinam que é mais difícil lidar conosco mesmo. Já o agressivo e o criminoso nos ensinam a ter firmeza e segurança no que dizemos. Tem também aquela cuja beleza é evidente demais para ignorarmos. Esta, talvez, seja a mais difícil.

Mas existem coisas que transcendem qualquer compreensão, que vão muito além do que podemos supor ou explicar. Um professor negro já é raro, outra lição anti-preconceito. Conversávamos no corredor, me falava sobre a sua religião: dizia que o unia com o seu ethos, assumia assim a sua cultura e uma dívida com seus ancestrais, como que se a fé necessitasse explicações. Narrava o que ocorria nos cultos e como isto levava a compreensão do comportamento humano fundamentais para a sua experiência como psiquiatra.

Foi quando eu perguntei a ele se ele já havia visto nos cultos algo que não conseguisse explicar à luz da ciência. Alguns poucos minutes de silêncio, os olhos nitidamente buscavam uma lembrança a que se apoiar, a mente buscava uma explicação racional para tudo enquanto pensava uma resposta. Disse o cientista: “não”. “No terreiro não, mas no consultório sim”, completou o médico.

sábado, outubro 07, 2006

Nada

Foi. Cansada ela olhava, simplesmente olhava: o rosto sem expressão era tudo que poderia significar no momento. Nem a residência, nem o mestrado, sequer o doutorado, nada disto ajudou a ele. Para que, afinal, tudo isto?
Olhando para ele eu me via. O que estou fazendo aqui? Para que ser doutor? Para que tentar, me esforçar, sentir, sofrer, perder, vencer? Por que não simplesmente ir? Por que insistir? Para tentar atravessar este caminho de forma mais agradável possível? O que é tudo isto se não o significado que damos as coisas? O que é o significado se não ilusões que criamos para esquecermos o nada?
Enquanto fechavam os olhos deles, eu fechei o meu, empatia ou reflexo, não sei. Eu vi o fio que nos liga, o antes igual a depois: o mesmo nada, exatamente igual. Por que então tememos o nada, se antes de sermos houve toda uma eternidade? E ainda haverá eternidade quando não formos mais.
Acabou, todos se foram. Senti um tapa no ombro, mas depois me vi sozinho. Afinal, é assim que se morre.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Inconsciência ou morte

Eu saí da sala querendo uma história para contar no blog, mas, desta vez, eu não queria falar mal da medicina. Não de novo. Apesar de eles terem me dado motivo, estes cirurgiões... Mas falar mal da grosseria e arrogância dos cirurgiões é um lugar comum batido demais para eu me expor mais. Eu sei que deveria ter ficado em sala, eles já estavam abrindo o pericárdio: muito a aprender, muito a ver. Mas não paravam de brigar entre eles, com toda a equipe e até comigo, que nada fazia, apenas olhava passivo. E me deu pena da instrumentadora, coitada. Se o paciente pudesse ouvir...

Na realidade eu não tenho certeza que ele não pode ouvir, provavelmente, eu nunca saberei. Isto me lembra que Maria José Limeira, escritora e doce jornalista democrática da, para mim, distante João Pessoa, que sempre me estimulou a escrever tinha me pedido para falar sobre catalepsia, que é a suspensão parcial ou total da sensibilidade e dos movimentos do corpo, e sobre a consciência durante a anestesia. Esta é a minha chance de respondê-la.

O padrão fisiológico que leva as duas situações são semelhantes: por algum motivo, a ligação que existe entre os centros superiores de controle dos músculos no cérebro e os próprios músculos é bloqueada, fazendo com que, mesmo que você tenha a intenção de mover alguma coisa, você não consegue, simplesmente porque esta informação não chega às fibras musculares. No caso da anestesia isto é obtido através de drogas semelhantes ao velho veneno das zarabatanas: o curare.

A questão principal que direciona a sua pergunta é a inarrável angústia de não conseguir controlar o próprio corpo, e estar consciente disto. Acredite, sei porque já passei por isto. Consciente e curarizado na mesa de cirurgia escutando a conversa dos cirurgiões, sem saber se vivo ou morto. Naquele momento fiz uma promessa que não levaria muito a quebrar: daí para frente seria diesel sobre rodas ou combustível de aviação, nunca mais gasolina em (duas) rodas.

Eu me lembro do parachoque crescendo, de outro carro vindo, do vôo sem asas. Agora imagine-se abrindo os olhos - a sensação é exatamente esta: "abrir os olhos" - e eles não abrem. Você sente cada movimento e cada manipulação que fazem no seu corpo, mas não é capaz de reagir. Até a dor faz falta! Você não sente dor. Sente a pele sendo cortada, seus tendões e ossos tracionados, imagina que isto lhe faz mal. Só. Aquela sensação afetiva ao estímulo nocivo, a que chamamos de dor, foi embora com a morfina. Sem dor, sem movimento, sem luz. Onde você está afinal? A decepção não poderia ser maior: até do céu eu esperava mais que isto. Nada de túnel de luz, nada de São Pedro, nada de nada.

Aqui eu me lembro história narrada pelo Dr. Neil R. Carlson que uma vez perguntou ao seus alunos qual seria a função do sistema nervoso central supondo-o como morada de nossas funções cognitivas superiores, a resposta foi unânime: "pensar". Tivesse eu obtido esta resposta, teria perguntado qual seria a vantagem evolutiva do "pensar" e porque seres pensantes teriam sido selecionados sobre os não-pensantes, a resposta no entanto poderia vir como o "pensar" sendo simplesmente uma "calda de pavão" usada para impressionar as menininhas pré-históricas e assim conseguir mais descendentes que pensem. Dr. Carlson, no entanto, fugiu desta discução estéril e então continuou sua aula, conforme descreve em seu livro "Fisiologia do Comportamento", mostrando que a principal função do pensamento é controlar o nosso comportamento, ou seja: as funções motoras de nosso corpo. Para isto ele serve, para isto ele evoluiu.

Sendo o normal a ação funcional de algo sobre aquilo para o qual ele evoluiu e sendo a medicina a arte de sobreviver frente ao anormal, sou levado a indagar: Como reage o pensamento quando exposto a uma incapacidade de cumprir as sua função primordial, ou seja, controlar o corpo?

Na biologia, diz-se que algo que perde sua função com o tempo deixa de existir, isto parece ser, de alguma forma, claro para aqueles que já passaram pela sensação de não saber se vivo ou morto. Pois uma vez que desconheço alguém que se lembre de ter estado morto, nunca ninguém foi capaz de apontar as diferenças entre os dois estados e, por mais, que tentamos fingir que o nosso corpo é apenas um apêndice para uma parte mais elevada chamada "espírito", para todos os fins práticos ele é tudo que temos e, aparentemente, sede de nossa consciência, como bem disse Schopenhauer. A angústia de perder ambos - o corpo e o espírito - embrulhados neste pacote a que chamamos "vida" é o que mantém a nossa espécie neste planeta até hoje e a minha futura profissão (medicina) sempre entre as mais bem pagas.

Tal angustia, acredite, é horrível. Ficamos face a face com todos os maiores dilemas da filosofia enquanto a mente gira descontrolada. Leva um tempo para se superar da sensação cartesiana de não saber se é ilusão tudo que percebemos em nossos sentidos agora ou se eram ilusões os delírios do corpo aprisionado em grades de curare. A única certeza, bem disse Descartes, é que se eu sou capaz de imaginar que estou escrevendo algo, logo eu, de alguma forma, existo.

Sid