sábado, março 08, 2008

A causa secreta

Estávamos em visita domiciliar, a mãe, bem idosa, na cama o coração de tão fraco debatia-se agonizante para manter o pouco de útil que ainda lhe corria pelas veias ativo, e como que murmurando em desesperada agonia o sopro hipercinético conseguia ser mais audível do que as vagas reclamações, coisa da idade segundo Dr. Fortunato que a escutava com um gentil sorriso. Sim era ele mesmo, só que agora era médico, o enfermeiro de Machado de Assis reencarnado 147 anos depois, isto foi a um ano. Causas secretas nos levam a atitudes surpreendentes, causas estas que se expostas revelariam a lógica por trás da contradição e o absurdo.
Não havia dúvida que era ele, Dr. Fortunato, quem mais aguentaria tanta tristeza de modo de forma tão inabalável, não bastava o que era dito espontaneamente, ele ainda tinha que perguntar e insistir. Mas um problema lhe chamou a atenção: havia algo de errado com o filho da tal senhora, irmão da dona da casa. É claro que ele tinha que saber, precisava, agora mais que tudo, saber. Para tanto usou o argumento indiscutível: "Sou seu médico, eu TENHO que saber". E conseguiu o que queria. Eu não soube deste segredo, mas sei que este é apenas um dos muitos segredos que jamais saberei dos meus pacientes, agora o que saber deste segredo mudou na conduta médica do Dr. Fortunato é algo que eu também jamais saberei.
Esta história vai e volta em minha mente, e a cada sofrimento que vejo um paciente desnecessariamente submetido me vêem o enfermeiro de Machado de Assis e seu clone mais moderno. Algumas vezes a coisa não é tão óbvia, outras é mesmo discutível. O velho benzetacil na profilaxia da febre reumática, a discussão dos psicanalistas que falta aos médicos remoer as entranhas do sofrimento de seus pacientes, meramente questões profissionais, nada mais que isto. Talvez eles tenham razão só se aprende a andar andando e só se aprende a sofrer ressofrendo várias vezes.
Mas às vezes nem tudo é tão óbvio.
Entramos no quarto da paciente com uma missão explícita: fazer uma anamnese e voltar com um diagnóstico. Quer era infecto-parasitária era óbvio, afinal no alto da porta de entrada havia a sigla "DIP". E a pergunta clássica teve uma resposta trivial: "dor de cabeça", enquanto todos anotavam a resposta, poucos perceberam a ameaça da acompanhante: "Fale a verdade, não adianta mentir, depois eles vão ver em seu prontuário."
Porque a paciente mentiria? Talvez pelo mesmo motivo que desviava o olhar e buscava uma fuga, de sua acompanhante-irmã e dos desagradáveis internos. Um olhar atento à irmã poderia já dar bastante ajuda: o olhar de reprovação, a camisa da igreja evangélica, as ações de pena explícitas. E quanto mais vinham perguntas, mais a paciente se escondia, mais a irmã dava respostas evasivas até que veio o auge da tortura explícita: "a quanto tempo ela vem apresentando este comportamento?".
A irmã não conseguiu segurar mais o choro, apenas repetia: "Ela era tão forte... Porque ELA teve que agir assim?", eu também não consegui mais segurar a cena, em voz bem alta para que todos escutassem, pedi licença e fui. Quando eu saía, ainda escutei uma voz: "mas nós ainda não descobrimos a doença", "CID B23", respondi.
Muitas vezes não é culpa nossa, algumas é sim, realmente necessário. Mas será que para o paciente faz alguma diferença? Tortura é tortura seja qual for a face que damos a ela, seja qual for seus fins. E é claro que nenhuma tortura seria pior para a evangélica do que ter uma irmã que carrega em seu sangue a cólera divina aos males da modernidade e também não há tortura pior para tal pecadora ser lembrada o tempo todo que tudo que lhe acontece agora é uma punição por seu comportamento promíscuo.
De que adianta teorias científicas uma hora destas?

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