domingo, junho 15, 2008

Herói

Eu o percebi quando ele se levantou, aquele homem enorme iria achatar a pobre mulher, preocupação que ninguém parecia ter, não obstante o trabalho que iria dar caso isto ocorresse. O gigante mal conseguia andar, as pernas, que um dia já devem ter se orgulhado de sua força, não sustentavam mais todo resto, mãos grossas, outrora tão poderosas, já não prestavam nem para apoio ou equilíbrio, de tudo, só lhe restava o amor da esposa.

No caminho do banheiro ele me disse quão ruim era ficar doente, especialmente quando a causa era desconhecida, mais preocupado com meu aprendizado do que com o sofrimento daquele homem, decidi examiná-lo. A história, que de inicio me pareceu fascinante, para ele certamente era dramática e, em segundos, encaixei seu florido quadro de sinais e sintomas em uma elaborada teoria de manifestações para-neoplásicas e como que se descortinassem a meus olhos uma velha história mal-contada logo percebi uma massa paupável no quadrante superior esquerdo do abdome e um linfonodo como o da velha freira, irmã Maria José.

Insisti com a equipe que deveríamos melhor avaliar o paciente, exigi uma ultrassonografia abdominal, bioquímica e hematologia. Ninguém parecia dar tanto valor ao doente como eu e, naquele momento me senti importantíssimo a ele, perigosamente importante, talvez, nunca iria imaginar que o perigo seria para mim, e não para ele, se o câncer o corroía, ele, afinal, estava no melhor lugar onde poderia estar, assim como eu, também estava no melhor lugar onde poderia deixar-me corroer pelo pecado que supostamente seria o preferido do diabo: a vaidade. Sentir-se importante para alguém e julgar ter feito uma descoberta "fundamental" é algo que desafia a nossa humildade e destrói a nossa capacidade de ver o mundo como ele é e nos cega com imagens de como gostaríamos que ele fosse.

Pois que a bioquímica revelou-se surpreendente e a hemato algo bem longe do para-neoplásico. O quadro, embora urgente, não era necessariamente crônico e, desafiado a provar os sinais que eu tinha visto, provei a mim mesmo incapaz de um exame físico confiável, na frente de uma pequena junta e de meus pares, o meu linfonodo era uma hérnia umbilical e não havia massa, mas apenas uma tensão em um paciente que fora examinado sentado. Não há exceções para o certo, disse, sem esconder um ar de reprovação, o professor.

Poucas vezes o caminho de casa me pareceu tão longo. Estava me acostumando a vitórias o que transformou a pesada lição em uma multifacetada conjunção de ensinamentos, quisera eu ter a sabedoria de aproveitá-los e nunca mais esquecer. Uma noite em claro e pesadelos de assassinato: teria eu, se pudesse, enviado aquele homem a quimioterapia?

Tudo bem... Não serei tão dramático, afinal nenhuma atitude seria tomada sem que antes eu solicitasse um parecer de um oncologística, mas quantas alucinações semióticas e delírios diagnósticos eu ainda sofrerei, o quanto eu preciso para ver somente a luz que entra nos meus olhos, escutar apenas o que é me dito? O que eu ainda preciso fazer para ter este dom, sua falta, certamente é bem pior do que uma incapacidade médica, para compensar isto, basta estudar, mas como compensar a esquizofrenia clínica.

Eu tinha dito a ele que o visitaria no dia seguinte. Não fui. Envergonhado de minha atitude, preferi esquecer, mas a culpa por ter abandonado sem esquecê-lo foi como vinagre sobre sobre a ferida ainda mal curada. No corredor da emergência, encontrei sua esposa, embora tenha tentado ignorar-la, ela me reconheceu e vei me falar.

Assumi minhas fraquezas e confessei minhas vergonhas, disse-lhe que preferia e que muito tinha desejado ver o marido dela com um triste diagnóstico de câncer, pois isto apaziguaria dor de minha alma, não me importando agora o sofrimento que ele mesmo pudesse ter. "Para nós você ainda é nosso herói", disse ela, "não fosse sua insistência em um diagnóstico de câncer, ele não estaria vivo agora".

Herói. Será que todos os heróis são estes covardes e inconseqüentes que eu fui? Será que tudo nos livros de história resume-se em coincidência e hipocrisia? Não quero que o elogia reacenda a chama da vaidade que estou e esforçando para apagar, nem quero nem imaginar o que teria acontecido caso a minha hipótese diagnóstica tivesse sido menos "espetaculosa" e, conseqüentemente, interessante.

Mas o que importa é que eu agora era um herói. Me lembrei do filme homônimo, cuja cena final muito me impressionou: o herói sendo alvejado por milhares de flechas, ele que poderia ter cumprido seu papel e saido ileso, preferiu ser morto, pois esta era a função do Estado que ele decidiu preservar com todas as injustiças inerentes, qualquer outra opção, pensou ele, seria pior, como narrou a voz de fundo: “morto como traidor, enterrado como herói”

Me sentiu igual, posso preferir o orgulho de ser herói, mas prefiro me concentrar nas setas que me apontam à realidade: falhei e falhei feio. Posso me enganar quanto a diagnósticos, posso errar quanto a fisiopatologia, mas jamais deveria ver outra coisa que não a luz que chega a meus olhos, jamais deveria deixar que interpretações modifiquem percepções, fatos deveriam ter mais peso que explicações. Que as flechas matem este louco.

Afinal que vaidade me levaria a importar-me com tão insignificante heroísmo, um paciente, dentre tantos naquele hospital, uma vida dentre tantas que lá já morreram, um hospital dentre tantos nesta cidade. Não quero ser herói, quero ser profissional. Salvar vidas não é mérito, é obrigação. Não quero nenhum agradecimento, nada que infle meu orgulho e rege a semente da soberba, eu quero é ser competente, salvar vidas com uma mão, sem que a outra saiba, e muito menos se orgulhe.

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