terça-feira, agosto 12, 2008

O dia que não existiu

Talvez não fosse a hora de perguntar o que houve, na realidade eu já sabia a resposta: ele não lembra. Perguntei então o que havia levado ele a tentar o suicídio e a resposta surpreendeu: foi sentir-se preso, sozinho, no escuro, drogado. A cela era escura, com apenas algumas fatias de luz passando pelas grades no alto da porta, um cheiro intolerável de suor e sujeira e um banco onde não se podia nem sentar, quanto mais deitar, devido a barra de ferro onde prendiam as algemas. E estar lá sem saber exatamente porque, por causa de um ato que não foi ele quem cometeu. Seu corpo talvez, mas não a sua mente. Três dias, que nem foram tão longos quanto podia parecer...

A surpresa da resposta veio porque não foi isto que eu perguntei, eu queria saber antes: o que fez com que ele se matasse ingerindo aquela dose absurda de medicamentos e álcool? Não tinha sido suicídio, apenas queria um tempo, descansar, esquecer, ou seja, sumir: morrer. Revisando tudo que aconteceu ele compreendeu, aparentemente pela primeira vez, o quanto estava sofrendo antes de procurar ajuda médica.

Milhares de projetos simultâneos, reuniões, compromissos, tarefas, todos com data limite estourando. Brigava com todos, todos eram imbecis e arrogantes, ele não, sempre a vítima, perseguido por estar sempre certo. Não conseguia se concentrar em nada: havia sempre algo importante e inadiável esperando, além do mais “filmes” de suas falhas repetiam incessantemente. É ele tinha falhas, e muitas. Não tolerava as falhas dele, se elas o torturam tanto, porque iria perdoar a de outros?

Não tinha sido suicídio então, mas o que fez uma pessoa que já havia passado por isto antes, com uma gama tão grande de opções de drogas, escolher justo uma que lhe tira a memória? Como alguém que pensou cuidadosamente em como daria cada passo, alguém que fez tanto esforço para conseguir a medicação, simplesmente não pensasse em como a medicação iria agir, e quais conseqüências isto poderia ter.

É certo que algo dentro dele sabia exatamente o que iria acontecer tão logo tudo aquilo começasse a fazer efeito e é certo também que era justamente isto que este algo estava procurando, agora só restava a nós descobrir quem, ou o que, era este algo e até que ponto isto seria diferente, ou igual, a quem ele realmente era ou poderia ainda ser.

Ao que tudo indica poderíamos assumir este caso como o suprassumo do behaviorismo, visto que este homem avive diariamente uma angustiante luta contra pensamentos que, embora percebesse como próprios de si mesmo, são tão violentos e autodestrutivos como intoleráveis, e alguma explicação deve existir para a existência dos diversos rituais criados que ele vive repetindo que embora tenham esta finalidade são inúteis para aliviar tal dor. Mas não serie este o caso aqui, mas sim propor um convite ao existencialismo.

A idéia básica é que a existência precede a essência e, portanto, não devemos, buscar uma explicação a uma natureza humana dada e imutável, como faz o behaviorismo radical, mas o existencialismo radicaliza em uma outra direção, pressupõe a ausência total de determinismo: o homem é condenado a ser livre. Condenado porque não criou a si próprio e uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo aquilo que fizer.

Esta noção é fundamental para a compreensão dos mecanismos que regulam a nossa vida em sociedade: já nascemos condenados, e não adianta clamar por justiça ou a pressuposição da inocência ante a dúvida, sequer houve julgamento. Mas o nascimento, este momento exato, embora já lhe pese o fardo, ainda não será suficiente para definir o homem em sua essência pois marca-lhe primeiro a existência: o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define. O homem primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. O homem é , não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz.

Como que contradizendo o que eu a pouco disse a pesada mão da condenação imposta ao homem pela liberdade assume a forma das contingências que cercam o homem, indiferenciando ele próprio “daquilo” que, como em nossa paciente, tomou as atitudes que agora “ele próprio” esta condenado à perda da “liberdade” pela justiça não metafísica dos homens. Eis que ele, ao ser definido como aquilo que faz, é definido como a sua resposta frente as contingências que moldam seu comportamento, sejam as contingências externas a ele (o mundo, a sociedade) ou seja as internas (doença mental, disfunções), mas para aqueles que definem o homem pelo seus atos (todos, inclusive ele mesmo), isto não faz diferença. Não é portanto nossa culpa agir assim, talvez nem tenhamos tanta liberdade, afinal, mas esta é parte da condenação que nos impuseram quando nascemos: havia sim, bem no início de nossa existência, uma enorme semente de essência a qual devemos domá-la e compreendê-la pois responderemos por ela, mesmo que ela não seja parte do que definimos como “nós”.

Mas o que então somos (aquilo que definimos) como “nós”? Se somos o resultado de nossos atos, personagens cuja essência é construída pelas nossas ações ao longo da vida, qual impacto ações tão dramática como estas teriam em nossa vida? Conforme vimos é de muito pouca ajuda, e nenhum efeito prático, a noção de que existe algo em nós que não participe de nós mesmo, porém não vai ser um ato que fizemos, do qual não nos lembramos que vai definir por toda uma vida.

Como desastres que quase sempre são confundidos com os fatos atípicos que os revelam, sejam as chuvas de verão que revelam a ocupação desordenada do espaço levando a culpa que deveria ser dos permitiram tal desordem, assim é também com as pessoas: uma arma em sua mão, que não era dele e nem sequer foi utilizada leva a culpa por todos os fatos que o levaram a estar lá e que propiciaram o surgimento dela, ou como diria o escritor francês, o covarde se faz covarde e o herói se faz herói, existe sempre uma possibilidade do covarde deixar de sê-lo, assim como o herói também, o que conta, na realidade, é o compromisso total e não um caso particular.

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