segunda-feira, setembro 15, 2008

Vazio por dentro

Chegou mais um PIMBA, foi o que disseram na sala dos médicos enquanto eu terminava, ainda meio sonolento, o meu sanduíche. Não bastasse o apelido nada carinhoso de Pobre, Imundo, Mulambo, Bêbado (e Atropelado que neste caso não se encaixava) que já lhe pôs longe de possibilidade de defesa ou mesmo justificativa, ainda foram capazes de comentar, às gargalhadas, “só que este é mais engraçado, fica fazendo umas caretas estranhas”, soterrando com máximo do desrespeito ao pouco de humano que ele ainda conseguia lutar para manter sob todo o fuzilamento moral que a nossa arrogância e soberba lhe impunha.
Quando cheguei perto para ver, o tal palhaço de quem todos riam, me deu vontade de gritar com ódio: “vocês não imaginam como isto deve doer?”, mas mas uma vez me calei, nunca consigo saber se é porque não sou forte o suficiente para enfrentar o grupo, o meu grupo, ou se eu sei que não faria nenhuma diferença. Ou mesmo porque eu também não consigo sequer imaginar como isto deve doer.
Acuado como um animal selvagem apanhado por caçadores estava ele amarrado em seu leito se debatendo. Enquanto as meninas fugiram com medo de sua violência eu me aproximei, nenhum grande ato de coragem, pois ele estava amarrado, apenas não tive nojo da situação. Quando cheguei bem perto dele, lhe olhei nos olhos e perguntei o que estava acontecendo e eis que o monstro tão assustador disse com uma voz carregada de sofrimento: “Por favor...”, Suavemente lhe perguntei o que queria, no que ele então como de imediato parou de se debater e se acalmou dizendo: “Por favor tire isto de minha cabeça...”
“Não vejo nada em sua cabeça”
“Estes pensamentos”
“Como eles foram parar aí?”
“São meus, mas não consigo controlá-los, eles vêm forte, cada vez mais forte... Por favor! Me dê qualquer coisa que me alivie... Qualquer coisa para dormir... Por favor... Qualquer coisa!”
Foi quando conseguimos pegar um acesso venoso e ministramos uma dose alta de benzodiazepínicos para que se acalmasse, quando todos foram dormir, exceto por mim que, apesar da ironia dos colegas insisti em ficar lá conversando com ele, se foi por humanidade ou curiosidade científica eu não sei, e talvez a ele nem importasse e, além do mais, as repostas a esta dúvida variam com minha auto-estima.
A ação dos benzodiazepínicos no comportamento é extremamente interessante pois leva o paciente (ou eventualmente uma vítima do “boa-noite Cinderela”) a um estágio que os que consideram a consciência profundamente relacionada à capacidade de reter memória implícita chamam de “inconsciente” onde todos os tipos de inibição são eliminados e o paciente fica sujeito a uma condição que fez estas drogas serem apelidadas de “soro da verdade” e sem a capacidade de lembrar-se de absolutamente nada do que ocorreu nos poucos minutes que se seguem à administração da dose.
Pensando nisto decidi aproveitar o momento para uma anamnese completa, era a minha chance de entender um pouco mais sobre o que estava acontecendo, apenas para aprender medicina, pois a minha opinião pouco valeria uma vez que o paciente já seria encaminhado à psiquiatria e não cabia a nós diagnosticar, nem mesmo emitir opiniões. Quanto ao dilema ético que citei, talvez eu pudesse justificar que aprendendo medicina eu poderia aliviar melhor os pacientes que encontrar depois de formado.
Mas voltando ao nosso paciente, quando eu já me encontrava sentado a uma cadeira na beira de seu leito ele me disse que tinha Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e para isto tomava 60mg de metilfenidato, uma dose um tanto quanto alta para um diagnóstico que para mim parecia um tanto quanto errado. Claro que mesmo que eu estivesse certo, e o psiquiatra dele errado, não cabia aqui discutir sua competência pois eu o diagnosticava no calor da sala de emergência e ele no aconchego de seu ambulatório, cabia sim discutir a falta de diálogo entre estes dois polos da medicina.
Para me explicar melhor os pensamentos: sabia que eram dele e que foi ele mesmo que os pôs em sua mente, mas a presença deles o incomodava tanto que precisava fazer algo para esquecê-los: beber, drogar-se, bater-se ou provocar situações que lhe causassem um sofrimento maior do que aqueles pensamentos, quando então ele teria um alívio temporário para eles. E era justamente o que não deixava ele prestar atenção em mais nada.
E o papel do metilfenidato nisto? Simplesmente fazia o que todo estimulante faz, alivia a queixa de desatenção servindo de doping intelectual, mas por outro lado aumentava a sua angústia e ansiedade o que culminou neste coquetel mortífero: metilfenidato, cocaína e álcool. Precisa de mais alguma coisa? Agora é só esperar ele dormir que não se lembrará de nada amanhã e eu aproveitei para continuar a anamnese perguntando-lhe o conteúdo dos pensamentos.
Nada mais desagradável possível: era sempre lembranças de coisa que tinha feito errado ou que podia ainda fazer errado então, buscando uma solução psicanalítica para o caso comecei a perguntar sobre sua infância e família. Seus pais tiveram uma rápida ascensão financeira porém às custas de excesso de trabalho e pouca atenção aos filhos o resumo disto foi que eles só lhe davam atenção quando fazia algo errado e sempre para brigar com ele, esta era a única fonte de atenção que tinha dos pais. Assim “fazer algo errado” tornou-se para ele uma fonte paradoxal de prazer: ao mesmo tempo que obtinha atenção dos pais era insuportável que esta atenção fosse desperdiçada com brigas ao invés de harmonia.
Na contramão das neurotendências serotominérgicas eu acabei de encontrar a peça psicanalítica do Transtorno Obsessivo Compulsivo: o conflito primitivo entre o desejo e a castração, sem, claro, esquecer o componente comportamental: tão logo começaram a aparecer as obsessões, juntaram-se a elas as compulsões em uma tentativa desesperada de aliviá-las e à realização de rituais compulsivos retroalimentou positivamente.
Tentei explicar a minha teoria enquanto ele me olhava com um certo olhar vago balançando a cabeça como se entendendo tudo, neste momento me senti um tanto quanto ridículo: eu, um interno sem grandes pretensões acadêmicas e ele bêbedo, drogado e sob efeito de benzodiazepínicos, nada melhor do que uma oportunidade de errar, pensei eu.
Ele então me disse que agora adulto o conflito parecia cada vez pior, seus pais, agora aposentados buscavam a reaproximação e ele resistia como pois a simples visão dos pais lembrava a ele que não pode recuperar o que nunca teve e sobre isto, mais culpa ainda pois agora a responsabilidade de atrapalhar a união era dele, pessoal e intransferível.
Pensei em minha vida enquanto ele me falava da dele, tentei reencadear as minhas lembranças e achar a fonte dos meus traumas e dificuldades e vi o quanto é estranho a nossa memória, talvez por falta de espaço nós não guardamos as memórias de forma contínua, mas pequenos saltos de imagens estanques: somos crianças em um momento e logo depois como em um passe de mágica nos tornamos adolescentes e parece que todo o resto foi ontem, enquanto rebobinava a minha fita fui vendo enquanto estranha é nossa evolução psicológica: o tempo vai passando as fases vão se sucedendo sem que tenhamos uma única oportunidade de reconsiderar e compreender o que está acontecendo, isto faz algo de perigoso: deixa o nosso corpo exclusivamente na mão de comportamentos condicionados, eis que é um mistério que “apenas” 20% da humanidade seja obsessiva-compulsiva.
Contei-lhe a minha teoria e o animei a buscar pela curo, possível e bem mais agradável do que estimulantes, aí ele me perguntou se parar o metilfenidato diminuiria a sua performance no trabalho e eu perguntei a ele quanto valia a sua paz interior, estaria ele disposto a sacrificá-la pela performance? Aparentemente sim, estranho este mundo tão competitivo o que para mim é tão óbvio outros sacrificam sem pestanejar, conforme discutíamos fui mostrando a ele que muita coisa do que fazia era na realidade reflexo de seu transtorno, quando me veio a pergunta pela qual agradeço até hoje a amnésia benzodiazepínica: se eu me livrar das minhas obsessões o que sobrará em mim?

Um comentário:

Mário Sérgio de Brito Duarte disse...

Prezado companheiro de bloguismo.
O que houve?
Por que parou?
Continue!
Blogs como o seu não podem parar porque simplesmente já não pertencem aos donos originais.
É domínio público.
Vamos lá!