segunda-feira, julho 25, 2005

Contra-transferência

Fui conversar com o paciente. Um senhor idoso e alegre. Tinha trabalhado na indústria naval, trabalho este que o deixou surdo. Como eu. Não escutava nada do lado esquerdo. Como eu. No meu caso tinha sido o estande de tiro no quartel, no caso dele as chapas de aço que se chocavam.
Tinha acabado de sofrer uma cirurgia no estômago. Coisa normal. Fui perguntar o que houve, mas não imaginei que a resposta me chocaria tanto.
Tinha um vizinho que o perseguia. E o xingava insistentemente. O ofendia e o observava. De início imaginei que ele tinha se metido em uma briga. Um tiro ou uma facada. Teve sorte, imaginei.
Mas ele continuou a narrativa, contou-me que o tal vizinho colocava escutas e câmeras escondidas por toda a sua casa. Desmontara a TV, mas o tal vizinho fora mais esperto, abriu-a antes e retirou a câmera antes que pudesse provar a família que estava certo. Mas ele o perseguia insistentemente. Aí ele me disse que tomou um vidro de cola. Precisava punir o vizinho.
Acabou me escapando uma pergunta talvez não tão óbvia quanto pareça: porque ele tomou cola se queria punir era o vizinho? A resposta me fez tremer: O vizinho tinha chegado ao limite do tolerável: disse que ia atacar sua netinha com quem ele morava.
Não aguentei a resposta. Era "óbvio", pelo menos para mim, que não havia vizinho nenhum, mas provavelmente uma esquizofrenia. Se ele tomou veneno para punir o "vizinho" que iria atacar a sua neta, minha dedução imediata é que a garato estaria correndo perigo, tão logo ele saísse do hospital. Pensei em matá-lo.
Quatro anos servindo no Operações Especiais, e nunca veio a oportunidade de uma missão real. Enquanto eu estudava para o vestibular, meus colegas estudavam para a polícia. Passaram, alguns, e vieram com aquelas histórias de como salvaram o mundo, e eu?
Agora eu tinha a minha oportunidade: um estrupador pedófilo em potencial.
Matá-lo certamente envolveria um planejamento que não seria viável na ocasião. Assim procurei o responsável do andar, que, como todo cirurgião, atendeu-me com o desdém que um acadêmico assustado merece. "Você ainda tem muito que aprender. Vou te dizer uma coisa: o tal paciente é esquizofrêncio, ele não segue a nossa lógica. Estamos em final de semestre. Você não tem nenhuma prova? Vá para casa estudar que você ganha mais."
Saindo do hospital vi dois pacientes conversando. Reclamavam dos médicos e do sistema de sáude, claro, como é comum aos pacientes. Um deles disse: "Queria ver se este doutorzinho faria isto comigo se eu fosse bandido." Aquilo foi como uma facada.
Será que eu iria ter a mesma vontade de matar, não um velho, mas um traficante e conhecido estrupador? Sei que certamente teria, mas agiria da mesma forma? Teria a mesma coragem?
Talvez como uma desculpa hipócrita imaginei que eu o correto não seria eliminar uma vida, mas sim o sofrimento nela. Talvez buscar a cura para os ímpetos de violência sexual. Mas isto é hipocrisia e covardia. Pode até ser verdade e ser o correto, mas o que me levou a esta conclusão não foi nada mais que a covardia.
Fui para casa estudar, era realmente a melhor coisa a fazer.
Sid

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