terça-feira, junho 14, 2005

CAVEIRA

Eu tenho uma caveira pendurada na parede do meu quarto. Duas, aliás. Uma em tecido emborraxado outra em metal. Já usei elas no peito. Me disseram que marcaria o meu coração. Já acreditei nisto.
De certa forma marcou. Por tudo aquilo que decidi estudar medicina. Sonhava em estabilizar um paciente animado pelo som de baterias anti-aéreas e a equipe de enfermagem em conduta de patrulha. A dificuldade em passar para uma universidade federal foi aos poucos mudando os meus interesses. Talvez tenha ficado mais maduro.
Quando ele entrou na sala, na sua ficha estava lá. Perguntei. Ele respondeu: paraquedista em 1983, comando anfíbio em 1984. Estranhei o meu comportamento, me empolguei mais do que acho que deveria, e do que acho que me empolgaria. Achei que devia ter vergonha disto.
Na realidade eu disse a ele que tínhamos aprendido a "deixar o corpo" e contar com a "moral" para sobreviver. Não tínhamos. Ele deixou isto claro com o desdém da resposta.
Polimiosite. Já começava a sentir o pulmão. Me lembrei de um refrão: "Eu já estive no inferno/E lá não tem fogo não/ Tem é muita água e enche o meu pulmão". A pior sensação que eu já tive foi tentar puxar o ar e só vir água. Não disse isto. Já tinha entendido a mensagem: o pior que fosse o charlie-charlie você sabe que tem um fim. Polimiosite não. Não perguntei, mas ele disse: era melhor morrer com uma bala.
Aquilo me marcou pois às vezes você acha que pode mudar com uma palavra, que tem uma idéia brilhante que ninguém pensou, mas não é assim. Dependemos da nossa interpretação dos nossos sentidos para reconstruir o mundo em nossas mentes e podermos trabalhar com ele. Esta reconstrução, para sair algo de útil, é então comparada com o nosso único padrão possível: nós mesmo. Acho que temos que trabalhar com a incerteza, pois não somos um padrão uniformemente confiável. Tão pouco confiável que, às vezes, este padrão falha até para nós mesmos.
Saímos de lá, conversamos sobre o paciente. Ele é forte, vimos isto, é louvável como consegue atravessar pelo que está passando com a impassibilidade que demonstra. Vimos ele saído do consultório, indo para casa e agindo como agiu na nossa frente: forte, impassível.
Agora eu penso: temos que lidar com a incerteza. Talvez ele tenha chegado em casa, onde ele é tão fuzileiro naval como um dia foi criança, bebê, frágil e indefeso. E chorou. Nunca saberei. Eu nunca estive no inferno.
Sid

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