domingo, maio 22, 2005

Assim se desfazem as ilusões

Perguntaram se eu não queria ir acompanhar a clínica de um médico famoso. Quem não iria querer?
Esta cidade, bem maior do que eu gostaria, obriga ao aluno responsável adiantar-se aos eventuais atrasos e chegar cedo. Cedo demais. Sentei-me no ambulatório e, achando que havia perdido precioso tempo, iniciei a leitura de um livro. A vida falou mais alto. á muita coisa acontecendo na espera, coisas que poucos médicos um dia viram. Eu mesmo, devo ao acaso a descoberta.
Logo chega alguém para conversar. Qual o seu problema? Sem querer mesmo saber. E começa: vou morrer. Todos vamos. Mas estou mal. O médico não dá atenção. O médico é grosso. Nem mesmo me mede a pressão. Eu moro longe. Não posso ficar vindo aqui. O bom mesmo seria se morresse logo. Pacientes... Sempre reclamando...
Seu doutor, PhDeus chega. Me levanto, e vou falar com ele. Logo a doutora, sua aluna, se adianta: "Não chamei ninguém, aguarde lá fora." Ele apenas sorri e diz: "É um futuro colega." Ela sorri e se desculpa: "É que tem sempre um chato." E derrepente começo a dar razão aos chatos lá de fora.
Entra o primeiro paciente. 39 anos. Parecia 59. Pelo visto era conhecido. Fraqueza. Reclamava da falta de atenção pela equipe de médicos. Os médicos imediatamente retrucaram que o paciente não segue as orientações. Não segue o tratamento. Há quanto tempo não aparecia na fisioterapia? Como ousava ele reclamar de alguma coisa?
Tomei coragem e perguntei por que ele não fazia fisioterapia. A resposta foi imediata: morava a quase 100km dali, não tinha condições de pegar ônibus e nem pagar um tratamento fisioterápico. Será que seu doutor não poderia indicar um médico ou qualquer tipo de tratamento mais perto? A resposta foi imediata: ele que procurasse, "afinal eu não posso resolver tudo".
Na segunda paciente as reclamações se repetiram. Entrou a filha revoltada. Gritava pelo consultório que havia pelo menos 5 anos de tratamento e nenhuma melhora, ainda por cima agora esta insônia. A resposta foi imediata, afinal a paciente se recusava a tomar a medicação. Assim não havia condições de se tratar de ninguém. Rebeldes, estes pacientes. Será que gostam da condição de doentes , por que recusam a ajudar os médicos. Pronto, um resultado foi atingido: a paciente não melhorou, mas a filha agora estava do nosso lado. Coitada de sua mãe.
No quinto paciente enquanto ele (e eu) se emocionava ao dizer seus problemas e dificuldades entra uns orientandos de pós-graduação. Começaram a discutir a data da defesa da tese. Agosto não podia, Junho era muito cedo. Um contou uma piada, todos riram. Afinal não se viam há algum tempo. Eles foram embora. O desagradável, estraga-prazeres, apêndice insistentemente irritante da doença, a que alguns chamam de paciente, ainda estava lá. Seu doutor perguntou: "Onde estávamos mesmo?" O paciente apenas balançou a cabeça, como que dissesse que já tinha dito tudo. Eu me segurei para não dizer: "discutíamos a relação médico-paciente". Mas a consulta já tinha acabado.
Acho que não preciso ficar chovendo no molhado, tentando me lembrar de cada paciente. Voltei para casa deprimido. Alguém tentou me consolar: "quando você se formar o seu discurso vai mudar e você verá que fará uma diferença maior. Você tentou fazer o que pode". Fiquei com medo. Será que o meu discurso não vai mudar tanto quanto eu me formar que ficará igual ao deles?

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