sábado, maio 28, 2005

Sem dormir

Hoje cheguei no alojamento dos médicos, enquanto me preparava eu escutava a conversa. "Tem é que agradar fulano". "Eu trouxe um monte de canetinhas do congresso e dei para ele". "Eu costumo a distribuir as amostras-grátis que eu ganho no consultório". Prestando mais atenção eu entendi. Trabalham em trezentos lugares diferentes para um salário que julgam justo, precisam agradar a algumas pessoas para poderem se manter na correria. Fiquei preocupado com o meu futuro. No vestibular eles pintavam de outro jeito.
Um dia normal no plantão. Em geral a gente dispensa um monte de gente pois "não é caso de internação". Acho que há algo de errado com tudo isto, afinal eu custo a acreditar que as pessoas busquem o pronto-socorro porque não têm nada melhor para fazer em suas casas.
Uma senhora veio trazida pela família. Não dormia. Insônia não é caso de emergência. Eles, entretanto, tinham certeza que era. Estranho. A paciente ia ser dispensada. O filho ameçaou registrar o caso na delegacia e abrir um processo judicial. "Interna esta velha para esta gente parar de encher o saco", disse a responsável pelo plantão.
Era uma doente crônica. Tentamos explicá-la o porque não era caso de internação: ela deveria procurar o seu médico para que lhe desse uma medicação para dormir. Ele deu. Não surtia efeito. A anamnese parou aí. Foi medicada: o mesmo bensodizepínico que lhe fora receitada por seu médico.
O filho insistia que a paciente tinha falta de ar. A médica examinou. Não tinha. Ora, quem era ele para dizer que tinha, não tinha. O filho disse que só levou a mãe dele lá para que durmisse pelo menos um dia, e, para isto, precisaria de oxigênio. O filho aparentemente não entendia nada de medicina, uma vez que a sua mãe não tinha falta de ar e, consequentemente, não precisava de oxigênio.
Esquecida na enfermaria, fui perguntá-lhe há quanto tempo não dormia: "três meses". Acho que isto justifica o desespero. Quiz saber o porquê. Fui perguntá-la: a medicação a fazia dormir, mas parava de respirar durante a noite. Acordava assustada, e grogue. Era melhor ficar sem a medicação, pelo menos respiraria, ela me disse, mas, afinal tinha ido lá apenas para dormir, pelo menos por uma noite. Tomou a medicação, não conseguiu respirar à noite. Nem teve suporte de oxigênio. Também não dormiu. Passou a noite conversando com a acompanhante da paciente ao lado, e me descreveu, pela manhã, todo o entra-e-sai da enfermaria.
Assim, quando perguntamos como ela estava, a resposta foi clara: "Estou ótima doutora, só quero ir embora para casa". Não tenho dúvida que é melhor ficar insône em casa. Perguntei ao seu filho se ela já tinha tido uma avaliação respiratória, se algum fisioterapeuta lhe havia sugerido exercícios para a respiração. "Fisioterapeuta?".
Voltei, questionei a doutora se por acaso o bensodizepínico não causaria uma depressão respiratória. "É claro que não. Você não estudou farmacologia? É a droga mais segura que existe." A dúvida ficou. Em casa descobri que nem o Goodman nem o Gilman estudaram farmacologia.
Disse que tinha observado que a paciente não tinha dormido. A resposta foi simples, como era de se esperar: "mas aí eu já não posso fazer nada". Esperava ao mínimo de tanta arrogância uma onipotência. Acho que estou errado.
Aprendi em aula que nunca deveria dizer: "eu não sei", pois quebra a confiança do paciente. Aprendi na prática a toda hora dizer: "eu não posso fazer nada". Não quero ser um aluno rebelde, pois se for nunca mais me chamarão para acompanhar clínicas nem cirurgias, quero estar junto dos grandes, quem sabe me farão enxergar mais longe, para além destas dúvidas que insistem em me perseguir? Não quero nunca mais pensar que deveria ser o contrário.
Sid

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