sábado, agosto 23, 2008

Depois de tudo

Quando fui passar a visita encontrei ele chorando no leito, meio que ainda inseguro e sem saber exatamente o que fazer, me sentei ao seu lado na cama e coloquei minha mão por sobre os seus ombros, seus olhos que antes fitavam a janela agora vagavam pelo chão como que em busca de alguma solução que eventualmente alguém haveria deixado cair, assim como os meus que buscavam por toda enfermaria alguma palavra, qualquer coisa, que eu pudesse dizer que não fosse as idiotices de sempre.

"Passei a minha vida inteira tentando ser forte", disse ele, "às vezes parecia que eu tinha conseguido, mas eu nunca fui. Tenho medo." Qual seria o meu papel agora? Afora todo o esforço da equipe médica em evitar a progressão da doença e buscar estratégias as mais curativas possível a melhor coisa que eu poderia fazer neste momento seria transformar este caminho o mais suave possível à aceitação fazendo que disto surgisse algum tipo de esperança, religiosa ou metafísica, qualquer coisa, enfim.

A questão era que para ele agora o problema não é a sua relação com a morte, mas a presença do fantasma da morte em si, ou seja, seria então totalmente inútil que eu desse conselhos sobre como mudar, se eu não mostrasse a ele antes que enquanto a morte é inevitável, os nossos sentimentos enquanto ainda vivos é que ainda podem ser de certa forma controlados.

Enquanto eu devaneava por conceitos básicos de tanatologia que pudessem (pelo amor de Deus!) me dar uma luz sobre como agir agora, ele voltou a olhar a janela e me mostrou os urubus: “Porque andam sempre em círculos? Como prisioneiros tomando banho de sol no pátio, sempre em círculos, todos na mesma direção...”. “Mas eles são livres...”, retruquei eu, meio sem saber porque eu disse isto, que naquele momento me pareceu a coisa mais idiota possível, depois de tanto pensar. “Ao contrário de mim, preso aqui nesta cama.” Então eu perguntei se ele sentia inveja dos urubus ao que me respondeu com um “sim” melancólico com a cabeça baixa e o olhar vago quando perguntei: “Inveja de que? De ser urubu?”. Não, de ser livre. “Livre para ser urubu?”, insisti eu, que finalmente consegui um sorriso.

“O que pode o urubu que você não pode?”, “sair daqui, desta cama”, foi a resposta imediata. Era a deixa que eu precisava, então bastava ser o mais enfático possível para afirmar que os urubus não voam por prazer, voam para conseguir comida para continuar voando em busca da incerta subsistência diária, não, eles não são mais livres que você, ao contrário: estão condenados eternamente a uma prisão: a prisão de ser urubu. Não podem jamais mais do que sua condição de urubu lhes permitem, passam portanto ao largo de todos os benefícios e prazeres que a humanidade criou e são obrigados a um único objetivo: conseguir comida de forma desesperadamente ansiosa em um mundo cada vez mais modificado.

Ele não, possuía sua subsistência e segurança garantida e poderia se dedicar a inovação criativa muito além do que qualquer urubu pudesse jamais sonhar. Entretanto, a liberdade nunca é total assim como nunca é totalmente restringida: seja na cadeia ou em um leito de enfermaria, quaisquer que sejam as contingências, você será sempre livre para escolher uma entre infinitas possibilidades para cada ato seu e sem a necessidade de luta pelas coisas básicas então a mente poderia ganhar a amplidão do espaço criativo. Mas algumas vezes não ganha pois a dor de supor-se proibido de seja lá o que for cala o grito do novo e reduz o homem a meros repetidores de fatos e ações, aí sim, como os prisioneiros girando no pátio sempre na mesma direção.

Mostrar ao doente que existe uma criatividade possível para além da dolorosa restrição ao “poder fazer” e da paralisante suposição teórica de que a “vontade de poder”, verdadeira força vital de cada um, estaria silenciada pelo aprisionamento dos lugares onde o corpo poderia ir ou as responsabilidades que poderia assumir é realmente uma arte curativa em qualquer situação e quaisquer que sejam as contingências enfrentadas: seja a imobilidade da paralisia ou caquexia, seja as grades de uma prisão ou mesmo uma lesão neuronal.

Poder redirecionar esta vontade para outros “poder fazer”es é dar nova vida ao corpo: enquanto que a morte não é escolha, sofrer por ela é. E aproveitar o tempo que lhe resta da melhor, e mais criativa forma possível também é. O prisioneiro que só pensa em sua “liberdade” perdida, que se esquece das responsabilidades decorrentes dela, assim como o doente que sonha com uma cura milagrosa que lhe devolva a juventude e saúde que a muito já se foram, só encontrarão dor e sofrimento pelo caminho, enquanto que todo aquele que se dispuser a aproveitar o possível, a cada momento este sim, encontrará a felicidade. Diga-se de passagem que todos morreremos um dia, daí, portanto, a frase anterior vale para qualquer um.




Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, sou médica, náo do tipo que ri do "pimba", mas tb do tipo que entende que nem todo mundo que ri do "pimba" mal-trata o "pimba", já deixei de ser radical a algum tempo. Consigo reclamar da "pitiática" sem deixar de atendê-la com respeito, com dignidade. Reclamo da "pitiática" do fim do plantao pq sou humana, mas tb sou médica e daquelas... daquelas sabe ? que acreditam na porcaria da palavra vocaçao, sei lá...
Abraço.