quinta-feira, setembro 14, 2006

Obrigado

Logo que entrei na enfermaria masculina eu percebi as cortinas em volta do leito de número 16: houve um óbito. É uma situação comovente, não obstante eu já tenha me acostumado, sempre me detenho para ver a reação das pessoas em volta, mas desta vez eu procurava uma pessoa específica, cujo leito ficava em frente ao do morto. Com isto fiquei observando a cena tempo suficiente para escutar uma voz, que não me preocupei em reconhecer, perguntar se era meu parente. Sem me virar, observando os enfermeiros fecharem o saco preto e o colocarem na maca, eu respondi que não. A voz, com a resignição usual aos longos habitantes dos hospitais e com um tom que queria dizer bem mais que isto, disse de forma seca: "aqui é onde as pessoas morrem." A depressão, aparentemente, cura-se espontaneamente em uma cicatriz de sarcasmo naqueles que vão perdendo a esperança da alta.
Insistia em procurar o meu paciente pois apesar de saber que tinha tido alta, sabia também que ele só iria embora do hospital depois da medicação no final da tarde. O saco de roupas e o rádio jogado sobre o colchão confirmaram a minha suspeita de que ele ainda estava por perto. Mas não na enfermaria. Encontrei-o sentado na escada e me sentei ao seu lado.
-Soube que você vai embora...
- É... ... ...porque não separam os pacientes muito graves dos que estão melhorando? Porque precisamos ser expostos a isto?
Enquanto eu explicava para ele que juntar todos os "condenados" em uma ala comum seria um ato de extrema arrogância daquele eventualmente responsável pela triagem que acaba por deixar marcas difíceis de serem apagadas naqueles que, eventualmente, conseguem sobreviver conforme demonstra a experiência em hospitais onde isto acontece. Por isto lá não era assim. Mas enquanto eu explicava a ele, eu ia me lembrando de como ele chegou, há quase um ano.
Fraco, contorcendo-se de dor e com os olhos profundos de tristeza e humildade. Me lembrei da primeira vez que o vi. O professor indo repassar as anamneses, e ensinar a avaliação dos sinais vitais. Tínhamos que sentir o pulso dele, primeiro o radial, no punho. A cada aluno, o professor pegava o punho dele que ele insistia em apoiar a cabeça, cada vez de forma mais agressiva, como se dissesse: "deixe o seu braço aqui, não vê que estou dando aula?". Furei a fila dos colegas, peguei o cobertor que estava enrolado ao lado de sua cabeça e, enquanto ele me olhava assustado, apoiei a sua cabeça, enquanto ele tentava se desculpar: "...é que eu estou sentindo um pouco de dor..."
Mas chegou a hora do pulso carotídeo, no pescoço, e o professor, para melhorar o acesso ao pulso, retirou bruscamente o cobertor o que fez com que o paciente se contorcesse de dor. E começou a mexer com a cabeça dele para lá e para cá. Quando eu disse: "Professor, o paciente está com dor." Óbvio que esta foi mais uma das minhas intervenções inconvenientes. E eu prendi a lição de que os pacientes de um hospital universitário servem exclusivamente para que estudantes aprendam medicina. Afinal, alguém tem que fazer o sacrifício para que seres tão especiais sejam formados. Ou você prefiria que não existissem médicos?
O tempo foi passando, e eu fui mantendo as visitas a ele, fui tentando mostrar que, apesar de ser o X do leito Y ele era um ser humano e como tal deveria ser tratado. Passava lá para rever as aulas de sinais vitais, nas quais eu sempre pedia para que ele me guiasse em seu próprio corpo: "Meu dedo está perto de onde pulsa? Me avise quando parar de 'sentir' o barulho..." Deixava claro que estava aprendendo e que nada daquilo contribuiria para a sua melhora, mas exclusivamente para a minha. A franquesa me fez conquistar a simpatia e ele sempre me perguntava o que eu tinha aprendido em aula. Que excelente exercício era explicar a ele!
Hoje ele estava lá. Ainda de aparência frágil, mas andava pelos corredores sem dor e era capaz de exigir um tratamento digno. Não éramos tão diferentes assim, um do outro, sentados na escada atrapalhando o fluxo de pessoas ocupadas...
Ficamos um tempo em silêncio, como se houvesse tanta coisa a dizer um para outro que simplesmente não valia a pena começar a tentar. Ele, afinal, tinha que ir para casa, levantou-se portanto. Ohei para ele e, mais como amigo, disse que agora ele tinha que se alimentar direito, fazer algum esporte e... ...procurar os Alcóolicos Anônimo. Abaixou os olhos concordando.
Quando ele se virou para ir embora (talvez tenha dito algo demais), estendi a minha mão a qual ele apertou com o olhar assustado do primeiro dia em que o vi. Alguns segundos sem dizer nada, tomei coragem e disse: "obrigado". Pela primeira vez senti dele um aperto forte, seus olhos mudaram para uma expressão de curiosidade que foi verbalizada com um "por que?".
- Por me ensinar medicina.
Nunca nenhum professor fez algo pelo qual ele não estivesse sendo pago para isto, ele não estivesse com a obrigação social e moral de fazer. Ele não. Fez por favor. Devemos ser eternamente gratos a nossos pacientes.
Sid

7 comentários:

Anônimo disse...

Ah... Obrigada. Gosto muitíssimo das coisas que você escreve. Tanto que nem me toca observar erros de estilo ou de gramática. Porque o que interessa mais numa leitura é sentir a emoção do texto, saber até onde vai a capacidade de criação do autor. Seus textos contém muita emoção. Um abraço, e saludos. Maria José Limeira.

Anônimo disse...

Conheci o seu blog hoje. Realmente é muito interessante.
Aperentemente você nutre uma revolta contra a medicina que dificilmente conseguirá manter se quiser se formar, coisa que eu acho que você não vai conseguir. O que é uma pena, pois tem demonstrado inteligência.
Os pacientes de um Hospital Universitário possuem o melhor tratamento que o SUS pode oferecer justamente porque são avaliados e reeavaliados por alunos e professores, sabem disto e certamente preferem estar lá a estar em qualquer outro lugar. O sofrimento deles não é nossa culpa.
Outro detalhe é que nós, professores, fazemos sim muito mais do que somos pagos para, ou estaríamos no consultório.
Gostaria também de lhe dar o conselho de prestar mais atenção ao que os seus professores dizem e parar de falar mal da medicina e dos médicos. Isto se realmente quiser aprender alguma coisa.
Eu sei que é muito bom ficar ouvindo elogios, mas estas pessoas que elogiam o seu blog conhecem pouco da realidade médica e não estão contribuindo em nada para a sua formação.
Pense nisto.
Antonio C. Nogueira Jr.

Anônimo disse...

-"Afinal, alguém tem que fazer o sacrifício para que seres tão especiais sejam formados. Ou você prefiria que não existissem médicos?" O que dizer sobre alguém que pensa assim???? Psicótico ? Maníaco ? O discurso parece sugerir que sim...; Transtorno de Personalidade Anti-social ?? Talvez...... Situações essas de completo desapego, frieza, indiferença, sarcasmo, e certeza absoluta de superioridade em relação aos que o cercam.

-Concordo com o que o colega diz acima, espero que não valorize alguns dos elogios deste blog. Não conhecem o dia-dia de um hospital, e da relação do cuidar. Pelo visto você também nunca conhecerá.

-Lamento profundamente por você.

PS: Concordo com outro comentários que interroga: "PQ VC NÃO MOSTRA A SUA CARA ?? NÃO TEM CORAGEM ??". Suas fobias realmente são risíveis.

Carlos Alberto

Anônimo disse...

Caramba,
fantástico!

realmente as pessoas e a vida nos ensinam bem mais do que o que devem isso fazer.

Anônimo disse...

Faço estagio de psicologia num hospital universitário e lá eu vejo essa frieza que você descreveu em seu texto...fiquei feliz de saber que existem médicos humanos. Parabéns!!!

Leila Silva disse...

Mais um texto honesto, humano e cru...li os comentários dos médicos. Eu acho que vc tem o direito de se expressar como quiser aqui no seu espaço, de desabafar, de refletir, de dividir, ainda que isto vá contra as opiniões dos outros. Talvez você precise disso para eloborar o seu dia a dia de estudante de medicina que não deve ser nada fácil. Eu não o julgaria.
Abraços

Anônimo disse...

Sou psicóloga hospitalar e professora. Sua realidade é irreal e os fatos seus são além de sintomáticos, interessantes apenas para os estudantes de psicopatologia. Fico muito triste em ver os elogios de algumas pessoas que não tem idéia do que é trabalhar no dia-dia com pacientes. Eles tem um interesse visilmente superficial e fora da realidade, dentro de qualquer contexo. Sim, você é humano, e como tal, pode adoecer. Receio mesmo que você precise de ajuda especializada. Você está claramente desconfortável em seus textos, e seu desconforto ao invés de criar melhoras claramente está gerando apenas solidão, prepotência, distorções.... talvez té delírios, crise de mania. Não dá para saber exatamente só através desses seus rabiscos. Descordo das pessoas que pedem para você se indentificar. Isso não resolverá as coisas e apenas aumentará seu desconforto, desequilíbrio, talvez delírios megalomaníacos, ideação suicida, difícil saber, como já disse. Talvez seja mais sábil desistir do curso, trancar a matrícula, creio que você apenas não deve prosseguir. Tudo que li de você, sem sua ótica, é lamentável. Alguns dos comentários elogiosos aqui são apenas alimento débil, sem cor, sem perfume, sem lágrima. Desista Syd. Você já deu mais do que sinais que essa não é sua praia. Desista, amigo.... desista. Pense seriamente sobre isso.