
Não tive coragem.
Medroso assumido.
Gostaria de ser um herói, quem sabe eu ainda tento.
Pelo menos eu divulgo, pode não parecer nada, mas...
http://www.malvados .com.br/normalpr oject/
Faz diferença descrever? Escrevo para expor meus erros e pecados, aquilo que eu não falaria. Aqui descrevo minha luta pela sanidade enquanto aprendo a sobreviver entre a dor e o sofrimento e espero angustiado o dia em que caberá a mim a decisão sobre a vida de ser exatamente como eu ou quando for minha vida nas mãos de outrem.
Sentada na mesa, a espera da cesariana, ela dava sua última entrevista como gestante, à pergunta sobre o nome do pai, a resposta em si já valeria a pena pensar e escrever, “assim de cabeça, eu não lembro não”. Isto nos coloca de frente a nossos preconceitos, como evitar julgamentos morais se fomos criados na mesma cultura que ela e ouvimos a vida toda, assim como ela, que as mulheres deveriam ser castas e as mães santas. E as crianças criadas sob a influência de um pai e de uma mãe.
Neste caso o que nos incomoda é o choque entre o que aprendemos, que o sofrimento humano é causado, na maioria das vezes, pela interpretação que damos dos fatos, e não pelos fatos em si. É pertubador, portanto, a nós juízes morais, a simples falta de sentimento ao anunciar isto, a pobre coitada, não dá a mesma importância que nós. Ignora os nossos valores, isto é imperdoável.
Mas isto, diria ela, é problema nosso.
E os nossos valores indicam que o nascimento tem que ser com hora marcada, anestesia e bisturi, sem gritos, sem choro, sem vida. A cesariana nunca foi a coisa mais emocionante do mundo, o ambiente asséptico, o silêncio da mãe, o automatismo do cirurgião, o sono do anestesista e a criança saindo, meio que com vontade de ficar, pelo lugar errado. E pensar que é assim, sujo e assustado que se começa uma vida, os braços desconjuntados crescerão e tentarão atingir o inalcançável, o coração que se debate desesperado ainda se espancará por emoções que ainda nem foram sonhadas e os olhos arregalados ainda chorarão muito mais. E que tudo isto, um dia, parará. Alegria e sofrimento, emoções a que aquela semente está condenada.
Curioso acadêmico, fiquei observando o bebê, segurado pela neonatologista que o examinava. Um susto me chamou a atenção, tão absurdo que tive que olhar para a minha própria mão: polidactia. Nas quatro extremidades ele tinha seis dedos perfeitos. Perguntei consternado à médica que respondeu gritando, entusiasmada, talvez pela oportunidade de eu ver algo tão raro em uma das minhas primeiras oportunidades de assistir uma cesária, talvez por quebrar a monotonia do plantão, sabe-se lá os motivos que levam a comportamentos absurdos...
Mas a felicidade dela não me contagiou. Talvez a tarde inteira assistindo a pacientes crônicos tenha me deixado soturno, talvez não só isto, mas imaginei aquela vida, começando em uma idade tão próxima a de sua mãe, com todas as dificuldades de se nascer em um hospital público em meio a miséria de um país virtual e uma comunidade perdida. E ainda por cima com seis dedos.
Sid