domingo, dezembro 25, 2005

Abusado

Mársias foi esfolado vivo. Fiquei surpreso de tamanha crueldade, por mais que metafórica, ter sobrevivido tanto tempo na mitologia apenas para representar uma idéia. Seu crime deve ter sido, de todos, o mais hediondo.
Mársias foi esfolado por ter desafiado Apolo. Representaria a petulância do irracional ao desafiar o progresseo inexorável da racionalidade.
Mais o que isto tem a ver com o tema central do meu blog? Como toda boa e clássica metáfora, a metáfora de Mársias é quase que universal, se não, não teria durado tanto tempo.
Aparentemente, todos aqueles que desafiam o progresso inexorável ou a racionalidade (cuja melhor definição seria a "visão de mundo do poder estabelecido") seriam condenados imediatamente ao esfolamento vivo. A boa notícia é que algumas vezes este esfolamento também é metafórico e só pode ser visto com os olhos da história, o que pode significar muito pouco aos olhos do esfolado. A má notícia é que este esfolamento pode perder o seu caráter metafórico e tornar-se progressivamente real.
Uma imagem que logo me veio à cabeça foi daquele velho em surrado terno com um sorrizo monalísico sacudindo o chocalho e olhando para a câmera. A foto foi tirada mas o velho paracia não entender a curiosidade de queme stava atrás das lentes. Eu também não entendi. Não posso negar a minha decepção com o encontro com o pagé. Espera um feiticeiro cujo poder emanasse naturalmente por seus poros. E não aquela caricatura. Agora eu penso: era o próprio Márseas. Toda atribo, seus rituais e o que sobrou de sua cultura haviam sido esfolados vivos e sentiam este terror entre a carne que sobrara em volta de seus ossos. Aquela carne que agora servia para representar apenas a dificuldade de se adaptar a uma nova cultura carregando como cicatriz uma cultura anterior que ainda não tinha sido digerida o sufiiente para ser substituída. A falta de luta, a privação da próprio confrontamento sugerido pelo esfolado, apenas teria deixado como herança crual a reprodução caricatural do que um dia eles foram.
Nada me tira da cabeça que o que destruiu a cultura deles foi a medicina. nada seria mais perigoso. Nada. O próprio Béria citou todo o processo em seu Psicopolítica. Por que um povo iria acreditar em seu pagé, quando lhe dão de graça aspirina? Quando o pagé de branco chega em um carro barulhento e fumegante. Quando o poder emana daqueles que agora chegaram para "ajudar"?
Talvez alguns não concordem, mas isto foi o que me pareceu.
Era um Mársias esfolado vivo, talvez não na sua opinião, o paciente que eu vi confrontar o psiquiatra. "Doutor, eu não quero mais tomar o remédio."
"Você é quem sabe. Você deve assumir as responsabilidades de sua decisão, e todos os riscos. Mas quem define o tratamento é você mesmo. A vida é sua" etc, etc, etc...
O paciente simplesmente respondeu: "Mas o sr. não disse tudo isto quando me receitou... A responsabilidade, então, não era minha?" Foi suficiente petulância para o esfolamento. Ora, quem era ele para responder assim ao doutor? Um ignorante! Afinal a única preocupação do médico era com a própria saúde e bem estar do paciente, e agora esta!!! Esses pacientes! Quem eles acham que são?
Eu vi isto quando tive que optar pelo tratamento conservador ou cirurgia na perna. As opções: tratamento conservador: três meses de gesso.
cirurgia: em um mês eu estaria jogando futebol.
Dois meses depois da cirurgia, eu ainda não ando. Daqui há um mês me disseram que eu tiraria a muleta.
Mas parece que Apolo ganhou a disputa por meios poucos leais. Isto nos levaria a um juízo de valor. Ou não. Talvez isto nos leve a conclusão que a vitória da "racionalidade" (dominante) seria inexorável, o que excluiria (para todos os fins práticos) qualquer juízo de valor. Assim, alguns são esfolados, mortos e torturados - alguns literalmente - mas a humanidade segue seu curso. Tem que ser assim.
Será? Muito em breve, eu serei - de fato e de direito - o próprio guardião desta racionalidade: um médico. Mas eu acho que tem outra forma de se ver o mundo e de se relacionar com ele. A mesma racionalidade que impõe o esfolamento aos que a negam confere o poder soberano aqueles que possuem o conhecimento esotérico do mundo apartir da divisão deste em partes estáticas, cuja mudança implicaria necessariamente na transformação daquilo que "é" em qualquer outra coisa.
Tal poder é político, no sentido que ele só existe quando existem aqueles que acreditam e se submetem. Assim, não é único. E não é o que eu quero. Eu quero é entender o paciente, em sua própria racionalidade, consciente que é ele, e não eu, o maior especialista e verdadeiro conhecedor do seu sofrimento, assim como o único verdadeiramente capaz - e poderoso - para combatê-lo. Quero entender o paciente como um processo dinâmico em constante transformação, cuja fronteira entre o que ele é e o que está em sua volta nem sempre é tão bem delimitada. Quero ser, no máximo, um estímulo a cura. Não quero curar, quero despertar o poder de cura e a autonomia.
Eu acho que é possível. Será?
Sid

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Sid. E depois achas estranho saires mal nas provas? Sendo capaz de captar toda a trama de variáveis por trás dos mundanos eventos, ao sondar a política e a antropologia, como poderia esperar outro resultado?
Médicos holísticos, dissestes a pouco.Eu dispensaria o rótulo médico - que tem um objetivo de ciência específica, a medicina - e me preocuparia com o holístico, que engendra em sua praxis todo o enredo de variantes envolvidos em um problema.
Sempre me fascinei com o espanto que pacientes "não passivos" causam nos médicos. Ser dono do próprio corpo, do próprio ser é anarquia, assim parece. Óbvio, considerando que a pessoa em tratamento de alguma doença tenha total discernimento do processo cura-doença-tratamento.
É, sejas bem vindo a rede de poder que os profissionais de saúde (de qq esfera, inclusive os psicólogos) compõem.

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado